O mesmo Brasil dos anos 2000 que, após sucessivas tentativas, elegeu pela primeira vez um presidente da república de um partido de clara inspiração socialista, viu também renascer, com ainda mais intensidade, o interesse pelas ideias da liberdade traduzidas pelo liberalismo. O contínuo desenvolvimento de uma comunidade de interessados e militantes pela concepção liberal permitiu ainda o florescimento das mais diversas subcorrentes do liberalismo, propiciando um quadro plural, vivo e fértil de debates, ideias, intelectualidades e movimentos.
Dessas subcorrentes, uma em especial tem ganhado corpo nos últimos anos: a autodenominada “esquerda libertária”. Apenas o seu nome já é capaz de gerar, ao mesmo tempo, dissonância cognitiva no público que supunha já compreender a diversidade do liberalismo e calafrios nos liberais que se sentem mais confortáveis no campo estético da direita. O Boletim da Liberdade foi ouvir do que se trata essa tendência e o resultado da pesquisa é esta reportagem exclusiva que se propôs a mergulhar, além da esquerda libertária, nas próprias raízes do liberalismo e das definições de esquerda e direita. Boa leitura.
Esquerda e Direita
Esquerda e direita são classificações políticas mais dinâmicas do que parecem ser. Foram forjadas ao longo do tempo por meio de acontecimentos históricos nem sempre plenamente conhecidos. Há quem, no jogo político, prefira renegá-las, ora para evitar rótulos vagos, ora por considerar um debate já superado. Há ainda os que não temem logo assumir um lado, sendo movidos muitas vezes por estereótipos e outras influências diversas que não um debate mais aprofundado – e honesto – sobre o assunto. O filósofo italiano Norberto Bobbio e o economista norte-americano Murray Rothbard foram alguns dos intelectuais que já se debruçaram diante do tema.
Em seu Direita e Esquerda: Razões e significados de uma distinção política (1995), Bobbio defendeu que a classificação, mesmo que difusa, poderia continuar servindo de referência política na contemporaneidade. Segundo ele, é possível distinguir, por exemplo, os indivíduos que priorizam o coletivo por meio da igualdade dos que, pelo contrário, creem na naturalidade da desigualdade e no fomento da competitividade.
Em um contexto diferente, Rothbard, discípulo de Ludwig von Mises e considerado um dos pais do libertarianismo, convida o leitor para uma viagem sobre as origens ideológicas da esquerda e da direita em seu livro Esquerda e Direita: Perspectivas para a Liberdade (1986), editado no Brasil pelo Instituto Liberal e pelo Instituto Mises Brasil. A origem da esquerda, segundo ele, estaria na contestação ao Antigo Regime – e o liberalismo puro seria, portanto, seu legítimo representante. Mas, ao permitir que a preocupação com os direitos naturais desse lugar ao utilitarismo, as ideias da liberdade teriam entrado em declínio e sido exploradas por grupos conservadores, criando um vácuo na esquerda que viria a ser logo ocupado pelos socialistas.
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“Os libertários de hoje estão habituados a pensar no socialismo como diametralmente oposto ao credo libertário. Mas este é um grave equívoco, responsável por séria desorientação ideológica dos libertários no mundo atual”, escreveu o economista. Nas palavras de Rothbard, o “oposto absoluto da liberdade” seria o “conservantismo” – termo que usou para designar os legítimos defensores da Velha Ordem, que com boas doses de romantismo, advogam pelo estatismo, pela teocracia e pela exploração de classe. O socialismo, como ideologia, até teria algumas semelhanças com as ideias liberais, como “metas de liberdade, razão, mobilidade, progresso e padrões de vida mais elevados para o povo”. Rothbard também traz à luz a existência de tendências de direita e esquerda do próprio socialismo: uma com foco autoritário e hierárquico, a exemplo dos regimes fascistas; e a outra que, em tese, defenderia o “definhamento do estado”, muito embora na prática apenas o tenha agigantado.
Naturalmente, as concepções de esquerda e direita ainda são controversas, e até não muito tempo havia certo consenso velado no ecossistema pró-liberdade de que, independendo de com qual subcorrente ideológica do liberalismo o cidadão tivesse afinidade, se de direita não fosse, reconheceria esse debate superado (prova disso é o sucesso do Diagrama de Nolan, que propõe uma clara diferenciação entre a direita amiga da liberdade e aquela que não o é).
A esquerda libertária
Um dos mais ativos (e produtivos) grupos de discussão no Facebook do ecossistema pró-liberdade brasileiro é o “A Esquerda Libertária”, que conta com mais de 5,5 mil pessoas conectadas – curiosamente, não é dos maiores. Com a presença de pessoas com pensamentos relativamente diferentes, ali congregam debates que vão bem além dos já usuais “privatizava tudo”, “PNA” e “estatista”.
Evidentemente, os libertários de esquerda não compactuam com a ideia da construção de uma sociedade socialista, geralmente ponto em comum daquilo que convencionou-se chamar de esquerda política no Brasil. “Rotular-se como esquerda mostra que não temos problema em dizer que temos as mesmas preocupações da esquerda, mas somos libertários, o que traz soluções diferentes”, explica Eduardo Lopes, estudante de economia e liderança simpática às ideias da Esquerda Libertária.
Ele ainda comenta que a esquerda libertária, enquanto forma de pensamento, tem preocupações com relações de poder que vão além do governo. “A esquerda libertária se preocupa com relações de poder, seja ele estatal, corporativo ou social.” Sobre o fato de essa subcorrente parecer ter maior sensibilidade em temas sociais, como a defesa dos direitos humanos, Lopes responde: “A Esquerda Libertária tem o entendimento de que relações sociais também podem criar ambientes favoráveis ou desfavoráveis às liberdades, que não são só ações do Estado que têm esse poder. Por isso, essa preocupação soa natural.”
O economista Daniel Duque, ex-pesquisador do Instituto Mercado Popular e, atualmente, militando no PSL/Livres, também compreende a subcorrente com a mesma ideia. “O que une todas as subvertentes da esquerda libertária é uma busca pelo fim das hierarquias social ou coercitivamente impostas entre os indivíduos. Busca-se chegar a uma sociedade na qual todos possam olhar uns para os outros como iguais, com as desigualdades explicadas unicamente pelas diferentes escolhas feitas consciente e livremente”.
“No Brasil, algo muito esquisito ocorre, pois vemos socialistas e comunistas defendendo pautas que deveriam ser reconhecidas como liberais, como os Direitos Humanos. Também se vê entre suas bandeiras, pautas identitárias caras à esquerda libertária, como o combate ao machismo, ao racismo e à lgbtofobia, além da defesa da legalização das drogas e o abolicionismo penal”, opina Duque.
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Aliança com conservadores
Rothbard expunha grandes críticas entre a aliança de liberais e libertários com conservadores. Por causa disso, as ideias liberais passaram a ser associadas, erroneamente, com a direita, segundo ele. Duque e Lopes também expressam seus pontos:
“A esquerda libertária vê diferenças irreconciliáveis entre o projeto de sociedade dos liberais e dos conservadores, de modo que seria muito difícil sintetizar as ideias principais dos dois movimentos em uma única frente. Creio que o caso mais evidente disso atualmente seja o Projeto ‘Escola Sem Partido’, que procura resolver um problema real nas escolas, mas com mais uma lei, mais autoritarismo, mais Estado. Não são esses os meios dos liberais”, exemplifica o economista Daniel Duque.
“Não faz sentido algum [essa aliança] e é decepcionante que até hoje exista uma ideia tão absurda. Mas sabemos que existe porque conservadores querem surfar na nossa onda, nós estamos ganhando e eles sempre irão perder, mas ainda são numerosos. Não há nenhum motivo além desse”, opina Eduardo Lopes.
Subvertentes
Em publicação fixada no grupo “Esquerda Libertária” do Facebook, o moderador explica que a corrente possui pelo menos cinco diferentes grupos. Em primeiro lugar, têm-se os libertários de esquerda pró-mercado, caracterizados por tendências “anarquistas individualistas de mercado de esquerda”, que por sua vez se subdividem entre os “mutualistas pró-mercado” (simpáticos ao cooperativismo econômico), “rothbardianos de esquerda” (concepção de um mercado com menos trabalho assalariado) e “georgistas” (defendem um imposto único sobre o uso da terra que financiaria um sistema de renda básica para todos).
Um segundo grupo de libertários de esquerda é mais ligado à concepção de justiça “libertária”. Nesse cenário, o foco é que as distribuições dos bens materiais só são justas se conferirem aos que produzirem o produto da produção e que as transferências podem ocorrer, desde que voluntárias. “Os left-libertarians concordam que tudo o que alguém produz é seu por direito, mas […] consideram que a terra e os recursos naturais, por não terem sido produzidos por ninguém, são de posse comum de toda a humanidade, e por isso a apropriação delas por alguém deve ser compensada à comunidade por meio do pagamento de um tributo sobre o valor da terra nua. Dessa forma, eles justificam a redistribuição. Eles são conhecidos também como geolibertários.”
O terceiro grande grupo da esquerda libertária é mais próximo da ideia do “socialismo libertário” – ou seja, simpático à ideia de um socialismo sem Estado. “Aqui podem ir desde os mais coletivistas bakunianos, até os neomutualistas que adotam o cooperativismo mas com uma retórica não pró-mercado, e passar para anarquistas individualistas que não sejam de mercado”, diz a publicação no grupo.
Batizados pela direita norte-americana de Bleeding Heart Libertarians, os “libertários sentimentais” são o quarto grande grupo que constitui a esquerda libertária. Em geral, se caracterizam por defender uma liberdade econômica considerável, como um liberal clássico, mas também uma “concepção de justiça social” significativa, que se caracterizaria por uma distribuição de renda que buscaria fornecer uma condição de suficiência ou, quando não possível, de prioridade para os mais desfavorecidos. “A esmagadora maioria dos BHLs são liberais que defendem a existência de um governo limitado que assegure uma renda mínima, e com mais um ou outro detalhe”.
O último grupo, finalmente, são os liberais sociais. Embora parecido com os BHL, possuem tendência mais estatizante. “A ideia de muitos deles é que a liberdade econômica não pode ser defendida junto com uma ideia robusta de justiça social, mesmo que eles em geral aceitem uma economia de mercado relativamente mais livre que a aceita por social-democratas”, descreve o artigo.
Referências no Brasil
Embora haja presença cada vez maior de libertários defendendo uma abordagem left-lib, não há consenso sobre a existência ou não de um movimento organizado no Brasil. “O mais próximo disso foi o Coletivo Nabuco, em Recife”, defende Eduardo Lopes. Em 2014, o Coletivo Nabuco participou de movimentos em defesa da liberdade da mulher e seus integrantes, de saia, foram à Marcha das Vadias. “Somos um grupo de ativismo que defende a liberdade em todos os sentidos: na cama, na feira e em todo o lugar”, explicou na época o jornalista Mano Ferreira, membro do Nabuco.
https://www.youtube.com/watch?v=w7jJUEE7rj4
Lopes compreende que, nos dias atuais, muitas iniciativas no Brasil possuem “sensibilidade social e estética de esquerda”, mas que são apenas adaptações, “características trazidas das discussões do movimento liberal em volta da esquerda libertária”. Ele explica: “O que geralmente é visto no Brasil como esquerda libertária é na verdade um bleeding heart libertarianism, ou liberalismo social, uma pegada que o [Instituto] Mercado Popular nos trouxe e, agora inclusive com boa parte das mesmas pessoas por trás, o Livres [corrente de renovação do PSL] prega. Tem a ver com preocupação social e estética.”
Embora Lopes saliente que essas observações possam ser “purismo” de sua parte, para ele as reais bases da esquerda libertária também se caracterizam pela crítica às corporações na mesma medida das críticas ao estado. Para corroborar esse ponto de vista, ele cita um artigo de Kevin Carson, anarquista individualista norte-americano, publicado no site C4SS, um think tank que se descreve como tendo uma abordagem de esquerda, anarquista e de mercado. “O liberalismo clássico de Smith e Ricardo era um ataque ao poder dos oligarcas whigs e dos interesses empresariais, nosso libertarianismo de esquerda é um ataque a seu correspondente contemporâneo: o capitalismo financeiro global e as corporações transnacionais. Nós repudiamos o papel do libertarianismo mainstream na defesa do capitalismo corporativo do século 20 e sua aliança com o conservadorismo”, escreve Carson.
Já Daniel Duque também cita a relevância do Instituto Mercado Popular para a popularização da abordagem de esquerda dos defensores do livre mercado: “A Fundação Joaquim Nabuco e o Instituto Mercado Popular são duas organizações que praticamente começaram do zero a formação de um movimento da esquerda libertária no Brasil”. Ele destaca ainda como principais referências do movimento nomes como Carlos Góes, Beatriz Martins, Mano Ferreira, Valdenor Brito e Karina França. “Foram e são essenciais para a propagação desse pensamento”.
Sobre a existência de um movimento propriamente dito de esquerda libertária no Brasil, Duque responde que, na verdade, ainda está em consolidação: “São pessoas buscando consolidar enquanto movimento um grande aglomerado de estudantes, intelectuais e políticos que acreditam na ação humana livre como uma virtude por si própria. Que querem estimular o empreendedorismo e a liberdade para quaisquer outras ações que não prejudiquem terceiros, sem esquecer da preocupação com os mais vulneráveis e socialmente oprimidos de nosso país.”
(Com a colaboração do jornalista Gabriel Menegale)
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