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‘A abolição foi a maior reforma liberal que já existiu no Brasil’, diz Leandro Narloch, em entrevista ao Boletim da Liberdade

O jornalista Leandro Narloch lançou em novembro "Achados & Perdidos na História: Escravos" e conversou com o Boletim da Liberdade sobre escravidão e o movimento liberal no processo da abolição

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Foto: Divulgação

O jornalista Leandro Narloch, autor de quatro livros da série best-seller Guia Politicamente Incorreto, lançou em novembro sua mais nova empreitada no mercado editorial: Achados & Perdidos na História: Escravos, desta vez pela editora Estação Brasil. A obra é composta por diversas histórias reais e inusitadas sobre escravos brasileiros, capazes de fazer o leitor compreender ainda melhor a complexidade daquele período do Brasil.

Nesta entrevista exclusiva concedida ao Boletim da Liberdade, Narloch fala sobre o tema da escravidão, quais histórias mais lhe impressionaram, bem como o papel do movimento liberal da época para a abolição da escravatura. Para Narloch, “um grande passo para o Brasil se transformar em uma democracia liberal foi o fim da escravidão” e a abolição foi a “maior reforma liberal que já existiu no Brasil”.

Ao longo da entrevista, o autor também traçou considerações a respeito do movimento negro no Brasil. Para ele, está na hora de surgirem mais movimentos liberais negros. “Hoje em dia, os liberais não gostam muito do movimento negro, porque ele costuma ser estatista, costuma demandar vagas em universidades”, diz. Confira abaixo a entrevista na íntegra:

Boletim da Liberdade: Qual foi a sua motivação de escrever sobre escravidão?

Quando eu escrevi o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, percebi que havia muita história boa que eu deixei de fora. Muita história curiosa que as pessoas se deliciariam ao conhecer. Imaginei um livro só com essas histórias, que seria bem instrutivo, polêmico e gostoso de ler.

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Boletim da Liberdade: Como foi o processo de encontrar e escrever as histórias que compõem o livro?

O tema da escravidão foi um dos mais bem estudados pelos historiadores nas últimas décadas. Tem muito estudo bom, tem muita descoberta boa. Mas também tem coisas que ainda estão represadas na academia. Meu trabalho então foi de principalmente pegar livros, estudo acadêmico e, às vezes, só recontar essas histórias.

Em alguns casos, porém, eu precisei ir atrás de fontes primárias, transcrever documento, porque algum historiador só citou o caso em alguma linha e eu não consegui encontrar mais detalhe nenhum. Então eu fui  nas referências que os historiadores citavam e transcrevi o material. Foi mais um trabalho de coleta. Tinha muita coisa. Eu poderia ter escrito muito mais. E coletar quais são as mais interessantes, os mais surpreendentes.

Foto: Acervo Público

Boletim da Liberdade: Das histórias relatadas no livro, qual mais lhe surpreendeu?

Várias delas. Tem uma que me fascinou desde o começo que foi a da Joanna Batista, uma mulher livre de Belém que se vendeu como escrava. Ela se vendeu por 80 mil réis, sendo 40 mil réis em jóias e à vista e 40 mil à prazo. Ela se comprometeu a passar um recibo de quitação de si própria quando o dono pagasse. E aí os historiadores, por muito tempo, se perguntavam: por que ela havia decidido se vender como escrava? Uma resposta tradicional é que ela era tão pobre, ela estava tão miserável, que ela precisou de alguma casa. De algum lugar que pelo menos tivesse abrigo, roupa e comida para ela.

Mas uma historiadora americana chegou a uma outra conclusão, anos atrás, dizendo que naquela época era muito comum ter remoção de população. O governador falava: “Olha, essas pessoas estão aí, esses vagabundos, sem fazer nada. Então vamos levá-los para o trabalho forçado assalariado para alguma região de fronteira”. Esses deslocamentos eram muito comuns na história. Como todo mundo preferia morar na cidade do que, por exemplo, na floresta, talvez a Joanna Batista tenha se vendido como escrava para preservar sua liberdade diante do estado. Isso é contraditório. Ela ter que se vender para preservar sua liberdade contra o avanço do estado.

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Boletim da Liberdade: Emendando um pouco na sua resposta, o livro está repleto de histórias inusitadas para o imaginário comum. Além dessa, temos também a do escravo que pede demissão ou daqueles que conseguem negociar com seus senhores melhores condições de vida. Em que medida essas situações relatadas são exceções ou, pelo contrário, eram mais comuns do que se pensa?

A maioria delas são exceções. Por exemplo, pessoas livres que se venderam no Brasil só se tem notícia da Joanna Batista. Mas, por exemplo, o termo “negociação” é um termo que está muito em voga entre os historiadores. Porque a gente tem uma ideia que os europeus, os senhores, eram onipotentes, todos poderosos. Mas, na verdade, não eram. Eles tinham que negociar, abrir mão de alguns desmandos até para pensar nos próprios lucros. Se você queria explorar o máximo o trabalho de um escravo, valia a pena você não incitá-lo à revolta. Para que ele não fugisse e você não gastasse muito dinheiro para capturá-lo depois. Pensando no próprio bolso, os senhores tentavam não pegar muito pesado com os escravos.

A gente tem uma ideia que os europeus, os senhores, eram onipotentes, todos poderosos. Mas, na verdade, não eram.

A gente tem que pensar “escravo” como uma propriedade. A gente tem um carro. Você vai arregaçar o seu carro, colocar uma gasolina ruim, quebrar o seu carro na parede? Claro que não. Justamente por pensar em si próprio, você vai tentar cuidar do seu carro. Mas as pessoas não são 100% racionais. Conheço muita gente, por exemplo, que trata o próprio carro da pior forma possível. E isso também era muito comum na escravidão. Então nós temos aí dois cenários. O senhor que castiga muitos escravos, e os escravos que em vingança retaliam, onde se forma uma tragédia dos comuns: os dois lados saem perdendo. E o contrário também: o senhor era um pouco generoso e isso causava uma lealdade no escravo. Meio que Hobbes e a Teoria dos Jogos acaba explicando esses dois cenários. Mas se eram exceção ou não… a maioria dos casos são sim, incomuns. A gente não pode negar que a maior parte da escravidão foi gente cabisbaixa, que nunca levantou a cabeça, que obedeceu a vida toda. E nunca se achava capaz de mudar de situação.

Escravos e sua senhora. Brasil. (Foto: Acervo Público)

Boletim da Liberdade: Assim como no Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, você volta a contextualizar que a escravidão também era comum na África antes dos portugueses e que a maior parte dos negros foram vendidos por outros negros. No novo livro, você também chega a citar que os portugueses chegaram a escravizar outros povos, entre os quais chineses e japoneses. Podemos afirmar, então, que os negros foram escravizados sem motivação racial?

Sim. O próprio [Yuval] Harari fala isso no livro Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, onde ele faz uma comparação meio politicamente incorreta à princípio. Ele compara a escravidão com a exploração de gado hoje em dia. A gente come carne, a gente paga pessoas que matam o boi e se transformam em bifes para a gente comer. Mas a gente odeia os bois e vacas? Não. Apesar da gente até gostar deles, a gente mata e retalha esses bichos e come. Claro, existe uma diferença enorme entre gado e pessoas. Mas a escravidão não estava baseada num ódio a outros povos. Simplesmente numa atividade econômica mesmo. Apesar de existir algum afeto, as pessoas eram exploradas e escravizadas.

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Boletim da Liberdade: Não era uma motivação contra o negro em específico?

Exatamente. Engraçado, pois como digo no livro, a escravidão começou no século 16. Durante grande parte do século 16, o Brasil era muito pouco importante para Portugal. As colônias da Ásia, da China e do Japão, eram muito mais importantes. A maioria dos jesuítas íam para lá também. Então, os chineses, indianos e indonésios foram os primeiros a serem escravizados. Mas era difícil você ter um tráfico de escravos em larga escala para o Brasil, para a América, porque demorava muito. Se, para vir ao Brasil, 10% dos escravos morriam na travessia pelo Atlântico, imagina do outro lado do mundo? Você não teria comida para tanta gente. Além disso, você tinha um custo de oportunidade. Da Ásia, você podia trazer especiarias e coisas mais valiosas.

A escravidão não estava baseada num ódio a outros povos. Simplesmente numa atividade econômica mesmo. Apesar de existir algum afeto, as pessoas eram exploradas e escravizadas.

Foto: Acervo Público

Boletim da Liberdade: É possível ver resquícios na vida social ou da personalidade do brasileiro de hoje da relação entre escravos ou entre escravos e senhores?

Essa é uma questão. Tem alguns intelectuais mais à esquerda que acham que a escravidão explica tudo no Brasil. Toda a característica do Brasil vem do escravidão. Eu acho que não. Por exemplo, a gente ficou muito tempo dizendo que “ah, os arcaísmos brasileiros, o Brasil está preso em resquícios da escravidão”. E, de repente, a gente viu aí em 2007 um boom econômico enorme, o salário dos trabalhadores mais pobres crescendo sem parar, e isso apesar de todos os arcaísmos. A demografia, por exemplo, talvez explique o Brasil mais do que a história.

Por muito tempo, as mulheres pobres tiveram muito mais filho do que as mulheres ricas. Por falta de instrução, por não saber como evitar filhos. Isso fez com que você tivesse mais trabalhadores menos qualificados no mercado do que os bem qualificados. E, com isso, o salário caiu. A demografia, por exemplo, explica muito mais o Brasil de hoje do que a escravidão. Ou, então, as elites predatórias, o rent seeking, oprimem muito mais o brasileiro hoje do que os resquícios da escravidão. Isso não significa, claro, que a escravidão não tenha sido relevante ou não tenha seus efeitos hoje no Brasil.

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Boletim da Liberdade: O movimento abolicionista pode ser considerado o maior movimento liberal do Brasil?

Acho que sim. Certamente. Naquela época, no século 19, você tinha liberais. O debate não tinha marxistas. O debate consistia no antagonismo entre liberais e conservadores. O marxismo ainda não tinha chegado por aqui. E você pega, por exemplo, Luís Gama, o grande abolicionista de São Paulo, ele era do Partido Liberal Radical. Eram causas genuinamente liberais aquelas. Gente que citava autores liberais. Mostravam a contradição entre uma sociedade livre e a escravidão. E citavam, por exemplo, Stuart Mill quando ele dizia que a pessoa era dona de si própria. E um governo abolicionista é meio que subjugado no Brasil. Porque a gente fala muito da Princesa Isabel quando fala de abolição, e os livros poucos contam na verdade como existiu um movimento grande no Brasil a partir de 1860 para abolir a escravidão. Um movimento popular, um movimento de intelectuais que foi bem relevante.

Luís Gama, o grande abolicionista de São Paulo, ele era do Partido Liberal Radical. […] Gente que citava autores liberais. Mostravam a contradição entre uma sociedade livre e a escravidão

Boletim da Liberdade: Podemos dizer que a abolição da escravatura talvez tenha sido a maior reforma liberal do Brasil ou pelo menos uma das maiores?

Sim, sem dúvida. O princípio básico da liberdade é que você é dono do seu próprio corpo, e do seu próprio trabalho. Se já existe um sistema que permite que as pessoas sejam propriedade de outras, e tenham menos direitos que outros, esse sistema não é nem um pouco liberal. Então um grande passo para o Brasil se transformar em uma democracia liberal foi o fim da escravidão. A abolição foi a maior reforma liberal que já existiu no Brasil.

A gente precisava restaurar essa tradição, e ter no Brasil um movimento negro liberal. Hoje em dia, os liberais não gostam muito do movimento negro, porque ele costuma ser estatista, costuma demandar vagas em universidades. Mas na verdade um movimento negro e liberal até já existe no Brasil, onde você tem por exemplo ONGs que arrecadam doações voluntárias e ajudam negros. Isso poderia ser muito maior no país e seria bonito de ver no Brasil um movimento negro liberal.

Missa Campal em comemoração da abolição da escravatura no Brasil, em 1888. À esquerda, a Princesa Isabel, que assinou a Lei Áurea. (Foto: Acervo Público)

Boletim da Liberdade: Qual é a importância, hoje, para os brasileiros do século 21, em especial os liberais e conservadores, compreenderem o período histórico da escravidão?

A maior importância é a gente perceber como às vezes a gente toma como normais ou socialmente aceitos costumes e relações que são inerentemente injustos. Na escravidão, muita gente achou que jamais sairia daquilo. Antes da Revolução Industrial, todo mundo era miserável. Mesmo as pessoas mais ricas do Brasil tinham dificuldade de vestir sapatos. Elas não se consideravam capazes de mudar a própria vida, muito menos um sistema que existia antes delas nascerem. Às vezes, consideramos normais relações de opressão, sem se ligar no quão injustas elas são. Isso serve não apenas para a escravidão, mas para a opressão que a gente vive com o estado hoje em dia.

A gente precisava […] ter no Brasil um movimento negro liberal. Hoje em dia, os liberais não gostam muito do movimento negro, porque ele costuma ser estatista, costuma demandar vagas em universidades.

Boletim da Liberdade: Obrigado pela entrevista, Leandro. Por fim, quais são os seus projetos para o futuro? Tem novos livros vindo aí?

Agora eu vou parar de escrever tanto. Vou ficar uns quatro ou cinco anos sem publicar nada, porque eu quero escrever um livro para ser best-seller internacional. Bem pretensioso. Mas esse é segredo, não posso revelar.

Boletim da Liberdade: Não dá para adiantar nada?

Deve ser um livro de grandes ideias que explicam o mundo.

★ ★ ★

Achados & Perdidos da História: Escravos: A vida e o cotidiano de 28 brasileiros esquecidos pela história

  • Autor: Leandro Narloch
  • Editora: Estação Brasil
  • Páginas: 202
  • R$ 39,90 (capa comum) e R$ 24,99 (eBook Kindle)

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