Já passava das 21h em uma terça-feira (3), no Américas Shopping, no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro. Quando se esperaria encontrar um ambiente vazio, lideranças políticas liberais e ativistas com camisas denunciando seus bairros de proveniência – alguns bem distantes – se amontoavam em filas e rodas de discussão.
Era a pré-estreia do documentário “Não vai ter golpe! – O nascimento de um Brasil Livre”. Produzido pelo Movimento Brasil Livre, com direção de Alexandre Santos e Fred Rauh, a exibição do filme de 2 horas e 14 minutos foi precedida de muita celebração e brincadeiras, com um público majoritariamente jovem, a maioria membros dos diversos diretórios do movimento no estado.
Depois das palavras de agradecimento aos presentes proferidas por alguns dos principais coordenadores do MBL, como Renan Santos e o vereador Fernando Holiday (DEM-SP), as sessões – o público foi dividido em duas salas – começaram. O Boletim estava lá e conferiu tudo.
Um filme pessoal
O documentário do MBL deixa claro, desde o começo, com uma explanação didática, através de sequências de gráficos e imagens colhidas na imprensa com narração em off, que tem, sim, o propósito de registrar uma visão geral acerca dos fatos históricos recentes que levaram ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. É, porém, de muitas maneiras, uma obra pessoal e intimista – e com isso é inevitável a comparação com a perspectiva da cineasta Petra Costa em seu Democracia e Vertigem.
O filme é sobre o impeachment, mas é também um filme sobre o MBL, assim como o filme de Petra é sobre a queda do governo com que ela e sua família simpatizavam, mas também e sobretudo é um filme sobre como a própria cineasta e algumas personalidades dos círculos de apoiadores e integrantes do governo Dilma vivenciaram pessoalmente o que consideram um golpe contra o Estado de Direito e um mergulho em um abismo antidemocrático.
O trabalho do MBL garante ao mercado audiovisual a oferta de um produto que mostra a História sob o ponto de vista oposto, o dos adversários do governo, isto é, dos vencedores da grande batalha política travada entre 2014 e 2016. Assim como Petra, os líderes do MBL têm suas trajetórias pessoais apresentadas, de maneira divertida e bem-humorada, criando empatia com o público e trazendo os bastidores de iniciativas como a marcha para Brasília e a pressão sobre os parlamentares para conseguir os votos necessários.
Sem a pretensão da exclusividade no processo histórico, o MBL afirma sua importância na coordenação e articulação das manifestações e procura demarcar sua perspectiva. A trilha sonora, alternando-se entre tons épicos, rocks instrumentais e cantos e gritos que se fizeram ouvir nas ruas atiçando os manifestantes, é festiva e triunfal, contrastando profundamente com a aura trevosa e pessimista do filme de Petra.
A linguagem descontraída e a montagem calcada em imagens de televisão, gravações amadoras do cotidiano do movimento, vídeos que circularam nas redes sociais do MBL e trechos de entrevistas com membros do grupo e com formadores de opinião – Rodrigo Constantino, Carlos Andreazza, Helio Beltrão e Luiz Felipe Pondé, por exemplo – confere fluidez ao filme e é capaz de conquistar a atenção do espectador.
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A mensagem
Uma característica peculiar do filme do MBL, entretanto, é que ele não se furta de dar voz a movimentos considerados divergentes, tampouco de reconhecer diferenças entre os próprios integrantes. Em determinado momento, Renan comenta que um dos companheiros na marcha para Brasília, Ian Garcez, era um “olavete”, posição que ele não compartilha.
Alguns críticos do MBL poderão pontuar que o pensador Olavo de Carvalho e o presidente Jair Bolsonaro são mencionados apenas muito superficialmente no filme. O presidente eleito após o furacão do impeachment e o governo de Michel Temer aparece apenas no registro em imagem de uma matéria jornalística sobre a presença de políticos nas manifestações.
No entanto, por outro lado, se o movimento se esforça por deixar claro que jamais apoiou saídas como a intervenção militar e procurou se afastar de grupos mais simpáticos a essas ideias, ele também abre espaço, por exemplo, para Marcello Reis, do movimento Revoltados Online, expressar sua visão dos fatos. O movimento Vem Pra Rua, que foi hesitante em adotar a saída do impeachment, também está representado no filme, bem como políticos de diversos partidos que, em algum momento, endossaram o processo.
Há até um trecho em que Kim Kataguiri afirmava, em uma manifestação da época, que a participação de sociais democratas simpáticos à tese do impeachment era bem-vinda. Essa característica pode ser explicada pelo fato de que, se o filme é antes de tudo um relato intimista e histórico feito pelo movimento para fechar um ciclo e desafiar a narrativa contrária dos petistas, ele também traz de forma relativamente explícita uma mensagem.
O MBL não se furta de exibir seu encontro com Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, para entregar o pedido de impedimento da presidente, e repudia qualquer associação com pedidos de subversão do Congresso ou rebelião armada. O recado é claro: o movimento quer sustentar que nunca apoiou medidas golpistas e sempre defendeu a busca de soluções através de ações políticas que se tentassem viabilizar dentro das instituições.
“Não vai ter golpe!” cumpre com isso um duplo papel. É, por um lado, um testemunho de personagens que foram de algum modo protagonistas de um período polarizado, garantindo à posteridade que haverá registros de todos os pontos de vista envolvidos. De outro, é uma sinalização política para os objetivos atuais do movimento e, em consequência disso, a defesa de uma posição que convém a seus propósitos nas batalhas imediatas de narrativas.
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