Ele é analista político, considera-se da direita democrática e tem sido uma das vozes desse campo que mais claramente criticam o governo e os aliados mais ideológicos que cercam o presidente Jair Bolsonaro. Em entrevista ao Boletim da Liberdade, Luciano Ayan, pseudônimo de Carlos Afonso e autor de Liberdade ou Morte (Simonsen, 2015), justifica a razão que considera que um governo Haddad, por exemplo, seria menos danoso ao país e diz que “já é quase inevitável” e que “não deve demorar muito” para que Bolsonaro tente uma ruptura democrática.
Na entrevista, feita de forma escrita, Ayan também fala sobre grupos de liberais que ainda dão sustentação ao governo, avaliando que há aqueles que “muitas vezes não ligam se há autocracia ou democracia, desde que se possam fazer bons negócios”.
O analista político também pondera na entrevista que declarações sobre o AI-5 ou ameaças ao fim da concessão da Globo “não devem ser toleradas” e que a direita democrática não deve pensar se isso “ajudará ou não a esquerda”. “Se a extrema direita sucumbir em seu ímpeto autoritário, deveria ser aberto um cenário privilegiando os moderados, de centro, direita e esquerda, para que se tornem as opções mais viáveis”, avalia. Confira a íntegra da entrevista abaixo:
Boletim da Liberdade: Poucos dias antes de o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL/SP) mencionar o AI-5, você afirmou no Twitter que o presidente “criou uma situação onde ele vai ter que tentar um golpe ditatorial”, pois “se não fizer isso, se enrola todo”. Por que você chegou a essa conclusão?
Luciano Ayan: Eu uso a teoria do seletorado, em específico, para as análises da base. Desde o início do mandato, esse é o governo das brigas internas, num nível ainda não visto na redemocratização. Vimos linchamentos de Mourão, Bebianno, Santos Cruz e outros, feito de forma explícita dentro da base. A consequência disso é que pessoas de melhor nível saem e entram as de nível menor (que toleram esse jogo).
A saída de Santos Cruz, por exemplo, é uma perda em termos de estabilidade. Nessa subida de pessoas de menor nível, a base fica, digamos, mais “sedenta de sangue”, isto é, mais disposta a ruptura do que antes. Na verdade, essa expectativa de que haverá um momento em que ele terá que fazer essa opção [de tentar um golpe] é algo que já comentei em análises feitas desde abril ou junho, mas agora tenho sido mais incisivo.
Há outro detalhe. A estratégia dos linchamentos públicos gerou um grande número de vítimas, que estão vivas e sabem que os linchamentos surgem de um núcleo centralizado de pessoas. Logo, essas pessoas linchadas ficarão ressentidas (e não é de se esperar outra coisa). A certo momento o número de rebeldes revoltados com os expurgos pode ficar muito grande. Na realidade, já está bem alto.
“A estratégia dos linchamentos públicos gerou um grande número de vítimas, que estão vivas e sabem que os linchamentos surgem de um núcleo centralizado de pessoas. Logo, essas pessoas linchadas ficarão ressentidas (e não é de se esperar outra coisa). A certo momento o número de rebeldes revoltados com os expurgos pode ficar muito grande.”
Um autocrata encontra sua solução na redução de base. Em outras palavras, a ruptura democrática. Isso poderia significar negociar com 80% das pessoas com quem negocia hoje. Tecnicamente, isso seria uma primeira versão de uma autocracia. Com uma autocracia, o líder poderá utilizar a máquina de repressão para perseguir (até violentamente, se necessário) alg quuns desses alvos de linchamento, desmobilizando a revolta. Se ele não fizer isso, verá os revoltados se insurgirem contra ele.
Observe que é algo novo, pois nenhum governo foi fundado em linchamentos públicos como esse. Por isso há um número tão grande de pessoas humilhadas publicamente. Para conter a revolta dessas pessoas, só repressão. Isso pode nem ser do desejo do presidente, mas do setor mais preponderante na base, que é o setor autocrático.
Há algumas possibilidades. Se o presidente derrubar a ala sectária do governo, não precisará tentar nenhum golpe ditatorial. Mas isso é difícil de ocorrer, pois ele está muito dependente dos bolsolavistas (já que se isolou). Este setor o forçará a tentar a ruptura. Se ele tentar, há uma chance (menor) de conseguir do que de não conseguir. Se conseguir, fica com o paraíso em mãos e concentra poder em um governo de base reduzida, com muita repressão. Se não conseguir, pode sofrer impeachment ou virar, de vez, uma “Rainha da Inglaterra”, dando gás para um parlamentarismo. É por isso que acredito que as alternativas para ele se esgotam e, ao menos, a possibilidade de que ele tente já é quase inevitável (e não deve demorar muito).
Boletim da Liberdade: Um conjunto de notórios apoiadores de Jair Bolsonaro publicou mensagens enigmáticas nas últimas semanas. Allan dos Santos, por exemplo, comentando sobre a possibilidade de o STF recuar na jurisprudência da prisão em segunda instância, afirmou que vê o “povo querendo um novo AI-5 e ai de Bolsonaro caso tente parar o povo”. Olavo de Carvalho também afirmou que “só uma coisa pode salvar o Brasil: a união indissolúvel de povo, presidente e Forças Armadas”. Na sua opinião, como os influenciadores da internet, os bolsonaristas, enxergam e reagiriam diante da possibilidade de ruptura institucional?
Luciano Ayan: Eu avaliaria não como os bolsonaristas, em geral, mas os bolsolavistas mesmo. Eles estão numa situação complexa e são o fator que exigirá de Bolsonaro a tentativa de ruptura. Eles não possuem base social (representam no máximo alguns milhares de alunos do COF, com uma moral específica, praticamente apartada da civilização). Estão com vários cargos no governo, que foram conquistados e mantidos na base do linchamento. Mas essas pessoas linchadas estão vivas e já começam a retaliar, desgastando a imagem dos bolsolavistas na base. Resta a eles tentarem forçar Bolsonaro a tentar a ruptura. Toda e qualquer tentativa de usar discursos inflamatórios pedindo “ucranização”, “caos”, “tudo ou nada” é oportunidade para eles. Eles estão fazendo o que se espera que façam. Aos democráticos cabe impedi-los.
Boletim da Liberdade: Em entrevista a um blog de esquerda, você declarou que preferia ter votado em Ciro Gomes e Fernando Haddad. Por que um governo com a liderança de um desses dois estaria melhor do que o governo Jair Bolsonaro, que – entre outras medidas -, já conseguiu aprovar a reforma da Previdência e a MP da Liberdade Econômica?
Luciano Ayan: Essas reformas são pontos positivos do governo, embora governos de esquerda já tenham tido seus pontos positivos também. Logicamente, eu preferiria um candidato como [Henrique] Meirelles, [João] Amoêdo ou outro do tipo, mas não se viabilizaram. Minhas opções declaradas na entrevista têm a ver com os candidatos viáveis
E não virei um petista, além de deixar claro que é preciso de oxigenação. Mas entendo que o governo Haddad seria um governo civilizado e estatizante, contra o qual poderia ser feita oposição. O governo Bolsonaro não é estatizante (embora muito patrimonialista), mas não civilizado com a divergência.
“Mas entendo que o governo Haddad seria um governo civilizado e estatizante, contra o qual poderia ser feita oposição. O governo Bolsonaro não é estatizante (embora muito patrimonialista), mas não civilizado com a divergência”
Num governo Haddad, a direita poderia ser perseguida por militantes da esquerda. No governo Bolsonaro, a extrema direita persegue a direita democrática. Vivemos, com Bolsonaro, um risco de “fujimorização” – quase como um chavismo de direita – enquanto um risco de “chavismo” com Haddad não seria tão grande. Mas seria preciso manter vigilância, é claro.
Boletim da Liberdade: Nessa mesma entrevista, você disse que “Lula foi um presidente com uma visão humana das questões políticas”, enquanto que, para Bolsonaro, “seres humanos são apenas carne para o moedor”. O que você quis dizer com isso?
Luciano Ayan: O governo de Lula foi social democrata e altamente estatizante. Quanto a isso não há dúvidas. Mas não se tratou de um governo que chutou tudo para o alto, jogando o Plano Real fora. Claro que há muitas críticas a serem feitas ao governo Lula, mas existiu sensibilidade nas negociações. Não é uma questão do líder ser “bonzinho ou malvado”, mas de querer correr mais ou menos riscos. Lula não foi um criador de caos. Sua gestão buscou falar para mais pessoas do que a própria base.
Já o governo de Bolsonaro é um governo de isolamento, que busca dar respostas não para a direita, mas a setores reduzidos de sua base. Isso pode até ser feito durante uma recuperação econômica (embora impulsos à economia tenham ocorrido também no governo de Lula), mas ele busca prestar satisfações à menos pessoas. Em suma, parece um governo menos focado em construir uma ampla base social, pois acredita que resolverá tudo na propaganda, no aparelhamento e na intimidação dos discordantes. Pode ser perigoso.
Boletim da Liberdade: Há um grande conjunto de pessoas que se identificam como liberais e tem trajetória no meio, especialmente no terceiro setor, que seguem apoiando o governo Bolsonaro. Elas estão não apenas no Ministério da Economia, como também na sociedade civil, como o caso do empresário Winston Ling, que foi quem apresentou Guedes a Bolsonaro e foi um dos fundadores do Instituto de Estudos Empresariais ainda nos anos 1980, que organiza o tradicional Fórum da Liberdade. Na sua opinião, é um erro esses liberais apoiarem e tentarem influenciar esse governo? Por quê?
Luciano Ayan: Não vejo como um erro. Vejo que é natural. Eu os defino como “liberais econômicos”. É aquele tipo de liberal que não se importa com a democracia, por exemplo. Preocupam-se apenas com a questão econômica no que tange à redução do tamanho do Estado e do déficit.
Para que existisse uma base mais estável, seria preciso que fossem misturados esses “liberais econômicos” com os liberais clássicos, mas estes últimos estão fora da base. Então, na economia, há tons de liberalismo nesse governo, mas, quanto ao uso do Estado, é um governo que busca ser iliberal. Isso não é apenas culpa dos “liberais econômicos”, mas de uma base desbalanceada (que agiria de outra forma de liberais mais amplos estivessem dividindo espaço com os “liberais econômicos”).
Boletim da Liberdade: Você frequentemente usa a expressão direita democrática em oposição aos que estão hoje no poder. O que defende essa direita democrática, como ela se distingue do presidente Bolsonaro e quem são hoje os seus maiores representantes?
Luciano Ayan: Eu não utilizo os termos “democrático” e “autocrático” de forma maniqueísta. Adoto-os de forma técnica. O democrático é aquele que busca manter ou ampliar o tamanho da base e não está disposto aos riscos da ruptura. O autocrático é aquele que busca reduzir a base e está disposto aos riscos da ruptura. Em suma, a decisão por autocracia ou democracia é uma questão de risco.
Os “liberais econômicos” muitas vezes não ligam se há autocracia ou democracia, desde que se possam fazer bons negócios. Não são todos que agem assim, claro, mas é uma questão de perfil. Já os liberais clássicos nasceram com a busca de manutenção ou ampliação da democracia, isto é, diluição de poder (sempre tirando-o da mão do Executivo e diluindo-o). João Doria já adotou políticas da terceira via, mas hoje é de centro direita. É de tendência democrática.
“Os ‘liberais econômicos’ muitas vezes não ligam se há autocracia ou democracia, desde que se possam fazer bons negócios. Não são todos que agem assim, claro, mas é uma questão de perfil. Já os liberais clássicos nasceram com a busca de manutenção ou ampliação da democracia”
Há vários no DEM com esse perfil. Infelizmente, sinto que o NOVO anda muito “liberal econômico”, fazendo pouco para impedir Bolsonaro de aparelhar o Estado. Estão perdendo oportunidade de explorar seu viés democrático. Já os autocráticos são aqueles que buscam a ruptura, pois querem a concentração de poder no Executivo e aceitam os riscos. Os bolsolavistas estão concentrados nesse objetivo.
Boletim da Liberdade: Você estaria nesse grupo?
Luciano Ayan: Entre os democráticos? Sim. Tenho um viés pró-Congresso. Não é o mesmo que considerar que ali existem “santos”. Estou dizendo que, na dúvida, é melhor ter o poder diluído, com a manutenção dos 3 poderes, do que sair demonizando o Congresso e chamando o Executivo de santinhos. Não há mocinhos e vilões, mas a torcida para que o poder esteja diluído. Isso é típico do viés democrático. Já os autocráticos já “sabem” quem é o mocinho e o vilão. Para eles, o mocinho é Bolsonaro e o vilão é o Congresso. É conversa mole, claro, mas serve ao jogo de concentrar poder no Executivo.
Boletim da Liberdade: Como a direita democrática poderia fazer o enfrentamento da extrema-direita autoritária sem que isso permita dar força à esquerda?
Luciano Ayan: Como a ala liberal de perfil “liberal econômico” dita o tom e os liberais clássicos e conservadores clássicos estão em baixa, acho que é difícil que a extrema direita hoje seja enfrentada sem que isso respingue na direita. Isso porque eles vão ter que tentar a autocracia e, se não conseguirem, cairão atirando. Vejo que é um momento de refletir e olhar para uma luta entre civilização versus barbárie.
Afirmações como “podemos recorrer ao AI-5” não devem ser toleradas e nem mesmo a menção a “cassar concessão da Globo”. A rejeição a isso deve ignorar a questão de se ajudará ou não a esquerda. Se a extrema direita sucumbir em seu ímpeto autoritário, deveria ser aberto um cenário privilegiando os moderados, de centro, direita e esquerda, para que se tornem as opções mais viáveis.
Boletim da Liberdade: Desde o início do ano, é possível notar situações similares se repetindo, como aliados do presidente sendo vez ou outra expostos e considerados traidores. Isso ocorreu, por exemplo, com os ex-ministros Bebianno e Santa Cruz, bem como com Luciano Bivar, Alexandre Frota e Joice Hasselmann. Existe alguma estratégia pensada pelo presidente por trás disso ou algum padrão que você tenha notado? Para muitos, parece que o governo está apenas se enfraquecendo.
Luciano Ayan: Essa estratégia é típica das seitas. E como o olavismo é uma seita política com espaço na base, irá aplicá-la. Para a estratégia, há alguns padrões, como “ataques interpessoais intensos” e “submissão humilhante”. No primeiro, cria-se um clima de disputas intensas internamente, para que as pessoas confiem apenas no líder carismático ou em alguns de seu círculo interno. Isso ajuda a tirar os de melhor nível (por exemplo, de maior pensamento crítico ou autonomia) e privilegia os puxa-sacos.
Para quem quer ampliar o poder dos que gostam de correr riscos, é um padrão essencial. Todos os cultos destrutivos fazem isso, criando a cultura de expurgos. É também para isso que tudo é feito publicamente, para que as pessoas sejam humilhadas das formas mais degradantes possíveis.
“Essa estratégia é típica das seitas. E como o olavismo é uma seita política com espaço na base, irá aplicá-la […] Todos os cultos destrutivos fazem isso, criando a cultura de expurgos. É também para isso que tudo é feito publicamente, para que as pessoas sejam humilhadas das formas mais degradantes possíveis.”
Basta imaginar que tipo de pessoa toleraria isso em empresas: são as de menor nível (e com menos opções no mercado). Esses que topam ficar são os mais puxa sacos e os que topam mais riscos (até mesmo à sua imagem). Não sei se todos os ministros apoiados pelo olavismo conhecem a estratégia, mas os cabeças do olavismo (e o próprio Olavo) devem conhecer os padrões muito bem, pois o exercem.
Parece que Eduardo e Carlos Bolsonaro jogam por esses padrões e por isso vivem humilhando pessoas da base, colocando-as para brigar umas com as outras. Parece que Bolsonaro entendeu bem como o jogo funciona. Um exemplo disso é quando ele deu medalha para Olavo de Carvalho após o linchamento de Mourão. Isso é usar o padrão de “submissão humilhante” junto aos “ataques interpessoais intensos”.
O governo fica cada vez mais isolado, mas podem surgir crises que facilitam a ruptura. Assim, o governo se enfraquece diante do mundo exterior (mas adquire oportunidade para “levar tudo” na ruptura), mas se fortalece – na ótica do grupo isolado – ao ter um núcleo completamente submisso. É sempre um jogo de riscos, claro, mas Bolsonaro parece ter seus momentos de “Coringa”.
Boletim da Liberdade: Por fim, levando em consideração esses 10 meses de mandato e outros casos que você tenha estudado, é possível analisar ou traçar probabilidades sobre os próximos passos do governo Bolsonaro e da direita no poder? Por exemplo, você acredita que Jair Bolsonaro termina o mandato ou que Olavo possa ameaçar ficar contra o presidente?
Luciano Ayan: Eu nunca gosto de “cravar” o futuro, mas avaliar cenários. Existe a possibilidade de que o país se converta em uma autocracia, na qual ele possa utilizar a repressão contra discordantes. Mas vejo como uma chance menor, mesmo que já se torne inevitável para ele. Se perder, pode sofrer impeachment ou habilitar um parlamentarismo (ou algo próximo disso). Nessas condições, Olavo pode ameaçar ficar contra o presidente se os sectários perderem espaço na base.
O jogo também pode ficar difícil de prever, pois estamos testando um cenário novo. A entrega de espaços na base (incluindo ministérios) para sectários – não apenas no nível de culto à personalidade, mas de culto político mesmo – é algo novo que não foi testado ainda em civilizações democráticas em períodos de paz. Assim, nós não sabemos que nível de caos eles podem criar para tentar segurar o poder nem até onde querem chegar (e quanto os democráticos podem tolerar). É por isso que recomendo que quanto maior conscientização sobre os riscos do autoritarismo – e, pior, sob os riscos do autoritarismo sectário – melhor.
https://youtu.be/uqFoOuzckrw
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