WAGNER VARGAS*
A confiabilidade e a transparência de um processo eleitoral formam as bases para a saúde da democracia e do Estado de Direito brasileiros. Em outras palavras, isso quer dizer que o meio ou o veículo escolhido para coletar e computar o voto de um cidadão precisa ser seguro, sem ampla exposição ou vulnerabilidade a fraudes e erros.
Acreditamos que estes princípios motivem o debate sobre o retorno do voto impresso, desde o mês passado em análise por uma Comissão Especial no Congresso, através da PEC 135/2019.
Além disso, há uma expectativa por parte da opinião pública de que o papel seja uma espécie de lastro para a operação eletrônica realizada pelas urnas e que, portanto, o papel poderia ser útil em casos de recontagem de votos. Será que isso se confirma na prática? Outra questão relevante: quais situações reais embasam algum tipo de desconfiança sobre o tema? Tentaremos debater sobre estas duas questões.
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A Lei 10.408/2002, aprovada há cerca de 20 anos, detinha os mesmos objetivos descritos anteriormente. Como o voto impresso passaria a ser obrigatório nas eleições municipais de 2004, as eleições presidenciais de 2002 serviram como experiência para análise dos resultados do voto impresso. Para isso, foram utilizadas impressoras externas nas urnas de todo o Distrito Federal, do estado de Sergipe, com uma amostra de 7 milhões de eleitores, em 150 cidades brasileiras próximas da capital dos Estados.
Eleições de 2002: Municípios 150
Seções 19.373
Eleitores: 7.128.233
% do eleitorado: 6,18%
Antes mesmo de mencionar os resultados, ressaltamos que o tamanho da amostra é relevante. Na realidade, em distribuições adequadas, é possível fazer inferências que têm significância estatística com um número muito menor de pessoas do que o utilizado.
Mas, dito isso, a Justiça Eleitoral registrou os resultados em relatório disponível no site do Tribunal Superior Eleitoral. Aí estão alguns dos principais pontos destacados:
(a) maior o tamanho das filas;
(b) maior o número de votos nulos e brancos;
(c) maior o percentual de urnas com votação por cédula – com todo o risco decorrente desse procedimento;
(d) maior o percentual de urnas que apresentaram defeito, além das falhas verificadas apenas no módulo impressor. (Tribunal Superior Eleitoral. Relatório das eleições 2002. – Brasília: TSE, 2003. 21 p.)
Um ponto interessante é que, no estado do Rio de Janeiro, por exemplo, 60% dos eleitores da amostra não quiseram conferir a impressão. No terceiro maior colégio eleitoral do país, as pessoas não se importaram em conferir e provavelmente não enxergam o papel como lastro. Pode parecer estranho o fato de que grande parte das pessoas não se importava com isso naquela época. Porém, de lá para cá, tudo tem se digitalizado ainda mais. Se as pessoas de fato acreditassem que o meio digital é inseguro, faria sentido que Bitcoin e demais moedas digitais, terem como principal ativo a confiança?
Até as empresas de gestão documental já sabem que a tendência paperless é realista, por economia de custos, ganhos ambientais, produtividade sem perdas de segurança e que tecnologias como blockchain e a criptografia e armazenagem em nuvem em geral estão disponíveis para cumprir esta função. Vale citar, inclusive, a matéria do portal IG, que menciona análise do Institute for Democracy and Electoral Assistance (IDEA) – que faz pesquisas sobre democracia – na qual 26 países utilizam urnas eletrônicas em eleições nacionais, dentre eles, a França. Além de 46 Estados, incluindo alguns dos EUA, também utilizam tal tecnologia.
Outro ponto importante destacado pela análise daquele teste com voto impresso em 2020 é que, no Estado da Bahia, eleitores sequer conseguiram finalizar a votação por conta destes problemas sistêmicos. E, no Distrito Federal, em que 100% das urnas estavam com uma impressora, o índice de quebra foi 5 vezes maior do que no restante do país.
Nas seções com voto impresso, mais de 30% delas acabaram utilizando o sistema de voto cantado, enquanto nas urnas eletrônicas este processo foi utilizado em apenas 0,6% nas urnas. Algo que pode, infelizmente, ser mais suscetível a fraudes e equívocos por permitirem a interferência humana direta.
Aumento de gastos não justificado
Nos dias atuais, a Justiça Eleitoral estima um custo superior a R$ 2,5 bilhões para a implementação do voto impresso, e por mais que seja contraintuitivo, não há evidências ou registros oficiais de fraude eleitoral e, menos ainda, comprovação de que as urnas eletrônicas tenham de fato comprometido o resultado de alguma eleição.
Vale citar que o próprio Presidente da República, Jair Bolsonaro, que fez discursos dizendo desconfiar das urnas eletrônicas, ficou de apresentar provas publicamente, mas não o fez. Portanto, faz algum sentido gastar recursos públicos sem evidências concretas?
A urna eletrônica já é auditável
Um dos principais pontos levantados pelos favoráveis à volta do voto impresso é a possibilidade de auditar as urnas eletrônicas, mas a auditagem já é uma realidade, como aponta o TSE, através de diversos recursos como Registro Digital do Voto, log da urna eletrônica, auditorias pré e pós-eleição, auditoria dos códigos-fonte, lacração dos sistemas, tabela de correspondência, lacre físico das urnas, identificação biométrica do eleitor, auditoria da votação (votação paralela) e oficialização dos sistemas.
Outro meio de auditar e atestar a confiabilidade dos votos eletrônicos, é com o Boletim de Urna (BU). Às 17h, logo após o encerramento da votação, a urna imprime cinco vias, com a identificação da seção eleitoral, o número de eleitores que ali votaram e a quantidade de votos registrados para cada candidato ou partido.
Uma via é colocada na porta da seção eleitoral, para que o resultado seja público, e as outras são distribuídas pelos fiscais nomeados pelos próprios partidos políticos, para observar se algum de seus concorrentes está infringindo regras.
E, desde 2018, é possível acompanhar o resultado e conferir os boletins pelo aplicativo “Boletim na Mão”, disponível para Android e IOS.
Interferência humana aumenta a chance de fraude
A recontagem dos votos parece ser um discurso atrativo, porém, se houver, com o novo sistema, um aumento de interferência humana, conforme indicado na análise do TSE, os erros ocasionados deste processo abririam brecha para judicialização do processo.
E, fazendo uma análise racional dos fatos, não vem ao caso desacreditar a análise de uma instituição sem apontar e provar seus supostos erros, sem evidência, não parece ser uma premissa robusta para sustentar a defesa da mudança de um sistema.
Enfim, se a intenção é promover melhorias para a democracia e para as instituições, não se pode aceitar como correta uma hipótese que vá de encontro aos fatos…
É importante ter em mente que quaisquer melhorias implementadas em um sistema eleitoral tendem a ser mais eficazes se motivadas em menor peso pela ideologia ou por lideranças políticas que usem o tema como instrumento popular. Se não procuramos um médico pelo time que ele torce, por que temos que decidir gastos públicos e mudanças democráticas crendo em discursos inflamados de ideologias políticas?
Qualquer coisa feita sem evidências certamente estará mais próxima do populismo do que do Estado de Direito. De qualquer forma, este debate é longo e ainda terá novos capítulos, com novas informações, porém, neste momento, a desconfiança no atual sistema carece de maior concretude e como cidadãos nos cabe questionar a todos os lados.*
*Wagner Vargas é cientista de dados especializado em Políticas Públicas e pós-graduado pelo Programa Avançado de Data Science e Decisão (Insper). Também é Especialista do Instituto Millenium.
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
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