*Por Raphael Lima
O Chile caiu. Acabou. O país mais livre e rico da região, e que estava rumando seguramente para ser “primeiro mundo” caiu para o socialismo e irá em direção à média da América Latina. A questão que nos resta é se ele irá parar ao redor de uma Colômbia, de uma Argentina, ou desafiará novos baixos, junto com a Venezuela. E não há nada que possa ser feito agora pelo Chile, senão aprender uma enorme e importante lição, pois a batalha foi perdida vagarosamente ao longo dos últimos 30 anos.
O símbolo disso é a votação dos constituintes, que acabou dominada pela ala psiquiátrica da esquerda. Disso resultou uma constituição que é tão extensa e intervencionista, que aparenta ser inspirada na brasileira. Onde inova, o faz para criar ainda mais espaço para o estado em cada detalhe das relações humanas.
Existe a esperança de que seja rejeitada, porém dada a constituinte eleita, e dada a situação do Chile, não é razoável esperar que algo melhor apareça. Isso porque ela não é a causa da queda do Chile, e sim apenas um sintoma chamativo de um problema mais profundo que precisa ser ilustrado.
Histórias são fáceis de lembrar e mais visuais. Como um defensor da liberdade, tenho muito interesse em viajar para países muito mais livres que o nosso. Os países que uso de exemplo como ideais ou referências, os que sofreram profundas transformações. Por isso, já viajei para o Chile e Estônia.
Quando cheguei na Estônia, conversei com locais e conhecidos brasileiros por lá. Todos estavam revoltados que Juri Ratas, então primeiro-ministro, tinha subido ao cargo traindo um compromisso eleitoral com a população de que não faria aliança com o EKRE, partido de extrema-direita. Todos esperavam que ele e seu partido centrista fizessem como sempre fizeram, uma aliança com o Partido Reformista, que todos entendem que foi responsável pelas enormes medidas de liberdade econômica que fizeram o país enriquecer. A traição foi vista como quebra de palavra e quebra com a direção que o país tomou após sair da União Soviética.
Mal existem políticos de esquerda lá. Todos entendem que esquerda significa comunismo, e todos lembram dos traumas. Quase todo mundo perdeu um parente para o regime comunista. O alcoolismo no país é um grave problema, resquício do desespero dos anos soviéticos, onde a mais direta saída mental para a ditadura era o fundo da garrafa.
A praça principal da cidade tem um monumento a Eesti Vabadusoda, a guerra de independência contra a União Soviética em 1919. O comunismo invadiu e queria nos submeter. Vencemos.
Estive lá em 20 de agosto, dia da Restauração da Independência, quando em 1991 se livraram dos soviéticos. A cidade estava coberta em festa.
Conheci Taavi Roivas, ex-primeiro ministro do país. Que aliás foi aluno da Mises University, no Alabama. No consideravelmente humilde parlamento deles, o partido tinha apenas uma sala geral. Nela, uma grande bandeira com o rosto de Milton Friedman, e uma pilha de livros muito bem editados de Hayek, Friedman e outros autores. Em destaque, Kapitalism ja Vabadus, a tradução do Capitalism and Freedom de Mises, publicada em 1962. O livro foi profundamente influente para Mart Laar, o primeiro ministro da Estônia de 1992 a 94, e 1999 a 2002. Foi Mart que implementou a maior parte das reformas de liberdade e desenhou a nova direção de um país livre para a Estônia.
Quando falei com a população geral, startups, amigos, motoristas do Bolt (o Uber de lá) todos sabiam. Quem não viveu, ouviu de quem viveu. Todos sabiam que o comunismo foi uma desgraça genocida para o país, que a liberdade dos anos 90 ergueu as massas da pobreza, que a liberdade permitiu o desenvolvimento das startups e empresas estonianas e colocou o país no mapa do mundo. Também sabiam que era fundamental continuar dando importância e celebrando valores de liberdade, pois por muitas vezes a Estônia caiu na mão de ditaduras por esquecer isso.
Nós fomos invadidos por todos os tipos de ditaduras. Terminamos na mão dos soviéticos. Nossos únicos momentos de alegria no meio disso tudo foram quando nos aliamos com outras nações em comércio em defesa. Quando nos isolamos, caímos. Com os soviéticos, morremos. Na liberdade, prosperamos, e agora somos muito mais ricos e seremos mais ainda graças ao capitalismo. Precisamos nos projetar para o mundo e sermos muito competitivos, já que temos pouco recursos naturais, população e somos um país frio. Todo mundo sabia disso.
Ninguém no Chile sabia disso.
Viajei para lá no começo de 2018 e fiz o mesmo levantamento. Tentar conversar com pessoas de todos os tipos, empresários, pensadores. Procurar livros e influências culturais.
Praticamente nada.
Nas livrarias, quase nenhum livro explicitamente defendendo liberdade, capitalismo e o empreendedor. Sem Ayn Rand, sem Friedman, sem nada. Pilhas de Marx e seus capangas, cartazes da Frida Kahlo e condenações a Pinochet. Liberdade? Liberdade e reformas econômicas eram sempre associadas a ditadura, autoritarismo, repressão e morte.
Nos museus a história contada era sobre a variedade cultural dos povos pré-colombianos, a colonização violenta, a ditadura e aqui estamos hoje. Somos ricos? Estamos crescendo? Não dava para saber olhando lá.
Piñeda havia sido eleito recentemente. Qual a opinião das pessoas? Vai ser um pouco melhor pra economia porque ele é de direita, e direita liga para economia, mas não liga para o povo. Ouvi isso de ubers até empresários. E não só por culpa deles. No discurso de Piñeda não havia muito sobre liberdade, autores, ideias, filosofias.
Agora em 2022 consegui conversar pessoalmente com Axel Kaiser, um solitário defensor do liberalismo no Chile. Seu resumo foi simples e direto: A direita cristã conservadora rica fundou as universidades, escolas, editoras e jornais. Isso feito, contratou praticamente só esquerdistas, e os deu 30 anos de palco livre para falarem e ensinarem o que quisessem.
Deu no que deu. O que mais era razoável de se esperar?
Em 2018 quando estive por lá minha conclusão foi também simples e direta: este é o melhor país da América Latina, praticamente ninguém aqui sabe disso, acham que quase tudo está errado e prontamente vão atear fogo a tudo na primeira oportunidade. Aproveitem enquanto existe, não vai durar.
Quando o óbvio aconteceu no fim de 2019, tivemos a confirmação disso. Nos debates aqui no Brasil e ainda mais no Chile, vimos o mesmo cenário: todos os dados estavam em defesa do modelo chileno. Tudo estava melhorando, e embora o país ainda tivesse problemas, estava bem encaminhado em resolvê-los. E nada disso importou. O ímpeto socialista, a associação da liberdade econômica com o regime ditatorial de Pinochet, e a pura força bruta dos urros de massas esquerdistas venceu.
Venceu na ignorância, no berro, na ofensa. Venceu no fogo, na mentira e na difamação.
A grande lição aqui é: liberdade é cultural, e é mão-de-obra.
Liberdade é uma filosofia, é um programa econômico, é uma série de poderosos argumentos e evidências sobre como desenvolver a experiência humana de viver. E absolutamente nada disso importa se culturalmente as pessoas foram ensinadas a rejeitar isso e abraçar o socialismo. Pessoas continuarão cometendo os mesmos erros infinitamente até que sejam ensinadas, calmamente, dedicadamente e de várias formas diferentes ao longo de décadas a não cometer esses erros.
Os socialistas têm uma vantagem em cima de nós nessa batalha: eles acham perfeitamente admissível, natural e belo o uso da força para esses meios. Para eles é correto, necessário e bom que a população seja roubada para financiar a doutrinação socialista. É correto, necessário e bom que crianças, adolescentes e universitários sejam obrigados a aprender essas ideias, e que outras ideias discordantes sejam simplesmente banidas. Liberdade de expressão para eles é um perigo, e a censura do discordante uma defesa justa.
É fundamental a existência de um corpo profissional de defesa da liberdade, assim como é fundamental que essa defesa não seja só técnica em livros grossos e complicados, mas disseminada em todos os espaços. É caro? Certamente muito mais barato que a destruição que o socialismo traz.
E precisamos ser muito cuidadosos para não sujar o nome da liberdade. A mancha de Pinochet é inseparável das reformas econômicas do Chile, e rejeitar a ditadura e suas mortes virou rejeitar também a liberdade econômica. É o clássico caso onde não basta estar certo, é preciso parecer certo.
Os socialistas também tem uma vantagem em cima de nós nessa batalha: eles acham perfeitamente admissível, natural e belo ser desonesto. Vão usar qualquer associação, erro ou problema para nos rotular de fascistas, ditadores e genocidas dos pobres. A atual campanha de difamação contra a bandeira de Gagdsden é um exemplo simples disso. Precisamos ter personalidades claramente liberais, sem vírgulas ou poréns. Precisamos ser extremamente claros e diretos sobre nossas ideias e valores, e rejeitar o incompatível. Precisamos estar conscientes de que um atalho momentâneo na política é apenas uma rota para o buraco.
O Chile está perdido. Depois de décadas de doutrinação socialista livre, bancada pelos que serão destruídos por ela, não há mais o que fazer.
Mas podemos ainda honrar a memória do que ele é e poderia ter sido ao aprender estas lições e construir liberdade em outros lugares. O Brasil nos apresenta hoje uma fantástica oportunidade, estamos fazendo um trabalho razoavelmente bom de crescer nesta oportunidade.
Mas não podemos falhar. Enquanto os socialistas toleram tranquilamente uma infinidade de fomes e genocídios, um erro de nossa parte será cobrado pela população por décadas a vir.
*Raphael Lima é fundador do canal Ideias Radicais e Especialista do Instituto Millenium.
Foto: Martin Bernetti/AFP