Há quatro anos, ardia o Museu Nacional, e, nas labaredas, se apagavam tesouros do nosso acervo histórico, dentre os quais as peças egípcias de D. Pedro I. Foram relíquias expostas à negligência de uma universidade federal, cuja nata, preocupada com doutrinação e não com a manutenção das instalações, permitiu a destruição de um patrimônio inestimável por curto-circuito em um aparelho de ar-condicionado. Nenhuma prevenção, nenhuma apólice de seguro, e, de um instante ao outro, a magia se reduziu a cinzas.
Após a entrega da fachada do Palácio que abriga o museu, o projeto ambíguo sobre a realização de uma autêntica restauração de interior nos coloca na iminência de ver o lar da família do primeiro monarca do Brasil independente transformado em um imóvel de tijolinhos e ferros. A par dessa possível descaracterização, ainda pairam suspeitas de irregularidades nas obras. Como de hábito, descaso com as tradições e permissividade no abuso de dinheiro público, em um binômio venenoso para o crescimento de uma nação.
Para meu consolo, assisti à série Brasil, a última Cruzada, relançada pela produtora Brasil Paralelo em comemoração ao bicentenário da nossa independência. Em mais uma iniciativa de desconstruir narrativas nefastas, a BP apresentou o Brasil como “filho” de Portugal, e a nossa História visceralmente atrelada à daquele país da península ibérica que, apesar da pequena extensão, se notabilizou pela coragem e perseverança de seus fundadores. Após 700 anos de combates para a expulsão dos mouros e a reconquista de seu território, Portugal, já ao final da Idade Média uma potência naval, mirou novos horizontes, e não apenas para a obtenção de riquezas, mas para a chegada à “terra prometida”, onde os lusíadas cumpririam sua missão civilizatória por meio da arriscada empreitada ultramarina que viria a ser sua última cruzada.
Um dos pontos altos da série foi a inserção de uma animação sobre perda de elos primordiais, nesse caso, sobre a distância entre um pai moribundo e seu único filho. O jovem, verdadeiro zumbi pairando pela marginalidade das ruas e alheio à trajetória familiar, é assolado por visões da participação de seus ancestrais em batalhas decisivas para o surgimento da nação Portuguesa. Ao longo da projeção, não pude deixar de associar as cenas à obra A Ilustre Casa de Ramires, tributo de Eça de Queiroz aos anos da grandeza lusa, em contraponto ao que o autor enxergava como a pasmaceira decadente de sua época.
No livro, o protagonista Gonçalo Ramires, cuja linhagem remontava à própria origem de Portugal, arrasta uma vida medíocre, em declínio financeiro e distante da tradição de seus ascendentes, até receber a proposta de publicação de uma novela sobre os Ramires, cujo apelo patriótico poderia lhe valer popularidade e o ingresso na vida política. Aceita a oferta, Gonçalo posterga os trabalhos, até que, sob pressão, se lança no relato da epopeia de um de seus avós medievais, Trutesindo, em uma vingança épica contra o assassino de seu filho.
Durante o curso, em paralelo, das tramas de Gonçalo e Trutesindo, o jovem, movido pela frustração de não ter herdado as virtudes dos avós, vai abandonando a mesmice de seus dias, desiste da política e se aventura em uma empreitada impensável para o outrora covarde descendente de fidalgos. O contato com as estórias de sua linhagem promove o amadurecimento de Gonçalo e o impulsiona a uma trajetória heroica, digna dos Ramires de outros tempos.
Tanto a série da BP quanto o romance de Eça nos fazem refletir sobre a consciência da ancestralidade como fator indispensável à formação da identidade de cada um de nós. Afinal, só reconquistaremos a autonomia de pensar e agir, comprometida por décadas de imbecilização, se estudarmos a História do nosso povo, e a tomarmos como referência para nossas escolhas. Assim fizeram a BP e Gonçalo Ramires, e assim devemos fazer nós, se não quisermos reduzir a dimensão da nossa humanidade ao frenesi de stories e curtidas…
Foto: José Cruz/Agência Brasil