Na data de celebração da reunificação da Alemanha, revisitei o filme título da coluna, e tirei do empoeirado escaninho da memória minhas impressões dos idos de 2004, para agregá-las às novas geradas pelas mesmas imagens. Rever uma obra é como reencontrar um amigo, perceber nele feições e gestual que você jamais havia notado, e correr o risco de, pelo mero efeito do tempo, desencantar-se ou admirar-se diante do velho conhecido. Para minha sorte, aquela que foi, um dia, apenas uma trama de afeto familiar, adquiriu dimensões bem mais amplas que tenho a alegria de compartilhar aqui.
O longa, ambientado na extinta Berlim Oriental (na então DDR), é protagonizado por uma professora que, após uma dolorosa separação decorrente de perseguição política, se torna uma aguerrida socialista, dessas “casadas com a Pátria”. À toda evidência, a guinada teria sido fruto de uma estratégia de preservação, própria e da prole em tenra idade, naquele universo onde a simples não-filiação ao partidão já valia a alguém o rótulo de inimigo do povo. Anos depois, essa senhora, diante de uma cena bem evocativa do trauma de outrora, sofre um AVC, e entra em coma por meses, enquanto caía o Muro e todo o seu mundo desabava, como dito por seu filho, fio condutor da estória. Durante aquele longo sono, o narrador e sua irmã haviam arrumado empregos na iniciativa privada, a temida Stasi havia desaparecido, e os bustos de Lênin e Marx haviam sido substituídos pelo símbolo da Coca-Cola.
Saída do estado letárgico como que por milagre, e ainda em risco, a professora passa a ser tratada como um cristal pelo filho que, receoso sobre a reação da mãe a mudanças tão radicais quanto súbitas, decide cercá-la em uma redoma, recriando, entre quatro paredes, a antiga DDR. Ou o que ele gostaria que tivesse sido a DDR, como reconhecido pelo próprio, ao final do filme, em tom desolado. E, para alcançar seu feito, recorre a expedientes criativos, como a gravação do que seriam os pasteurizados telejornais da era comunista, e a colocação, nos novos produtos, de sinais dos antigos. Engraçado e tocante ver aquele filho amoroso procurar rótulos da marca estatal de pepinos, encontrados apenas em caçambas de lixo, já que o mercado emergente havia debandado rumo aos pepinos Holandeses.
Na minha revisita, não parei de me perguntar as razões que levam seres humanos a bloquearem suas percepções sensoriais, a pararem de pensar e a negarem dados objetivos para aderirem à narrativa imposta por um líder ou, no caso do filme, pelo establishment da “Grande Pátria Socialista”. A obsessão pela marca estatal e a demonização apriorística de logotipos de multinacionais são aspectos da rejeição absoluta a um grau mínimo de incertezas, nosso temor desde as cavernas, mas que não encontramos meios de contornar. Afinal, se, por um lado, a DDR reprimia as liberdades e não atendia às necessidades de uma sociedade de consumo, por outro, os ventos da mudança vindos do ocidente traziam a reboque o desemprego em massa, desabastecimento, redução no poder de compra e cargas-horárias extenuantes para os padrões socialistas.
Agarrados à suposta segurança provida pelo Estado, nós, humanos, chegamos a dar narrativas rocambolescas aos fatos, apenas para não ferir nossas crenças. Foi o caso, no longa, do momento em que a mãe escapa ao seu ninho, depara com o novo cenário, e ouve do filho que os ocidentais estariam em migração maciça rumo à DDR, exaustos que estavam de tanto trabalharem em prol do lucro capitalista. Para corroborar a explicação, o jovem grava um último vídeo que assiste ao lado da mãe, e, nessa cena, a comovente troca de olhares entre ambos soou, para mim, como um agradecimento implícito da senhora pelos esforços do rapaz em tornar a realidade mais palatável. Gratidão daquela que, após experimentar os horrores do regime, teve de incorporar o fundamentalismo socialista como sua única verdade possível.
Adeus, Lênin? Jamais! Aquele que crê sem direito a dúvida não tolera sequer um “até breve”.