Assim como o futebol, reclamar dos tributos e das atividades fazendárias é um esporte que nasceu na Inglaterra, mas tornou-se de elite no Brasil. E não é sem motivo. O que Alfredo Augusto Becker categorizou como um “carnaval tributário” nos anos noventa apenas se tornou mais caótico ao longo do tempo.
A ausência de uma matriz tributária clara, o constante atendimento a grupos de interesse, a multiplicidade de fatos geradores, alíquotas e obrigações acessórias criaram um ambiente hostil para qualquer um que não tenha interesse em se especializar no assunto. Essa complexidade foi fundamental para manter o Brasil na condição de “país do futuro” que nunca chega.
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Contudo, para surpresa de todos, finalmente há esperança de uma reforma séria e estruturante. A ideia parece um sonho distante, mas não é. Em um movimento absolutamente inusitado no Brasil, o Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), um think tank independente, pautou a discussão e estabeleceu como norte aquilo que há de mais adequado em termos de política tributária: transparência, isonomia, não cumulatividade, desoneração das exportações e das cadeias produtivas, neutralidade, simplicidade e tantos outros atributos que foram conquistas liberais no debate público em nível mundial.
Num segundo momento de virtude, o Congresso Nacional se abriu para uma discussão profunda e compatibilizou a proposta idealizada pelo CCiF (PEC 45/19), originada na Câmara dos Deputados, com a iniciativa do Senado Federal (PEC 110/19). O resultado foi a criação de um consenso nacional sobre a necessidade de uma reforma tributária no que diz respeito aos tributos incidentes sobre o consumo, guiada pelos princípios compartilhados pelas propostas apresentadas e pela consciência de que a solução deveria implicar na redução de privilégios e desonerações setoriais.
Infelizmente, a alegria do brasileiro dura pouco. Com o retorno do Partido dos Trabalhadores ao comando da nação, tornou-se bastante óbvio que essa discussão seria contaminada pelos interesses setoriais, que há tempos sabotam o desenvolvimento do Brasil, mas que tinham dificuldades de articular seus interesses no mandato do presidente anterior, devido à sua incapacidade de articulação no Congresso.
Não deu outra. Aqueles que até então estavam perdendo discretamente seus privilégios entraram em campo, e voltamos a misturar assuntos, como desoneração da folha, pacto federativo, impostos sobre o patrimônio, entre outros, para que as coisas mudem apenas o suficiente para que permaneçam as mesmas.
Naturalmente, a reforma foi se transformando em algo pior. O número de alíquotas aumentou, as desonerações de setores “estratégicos” voltaram a aparecer, e a estrutura tributária proposta ficou mais complexa. Ainda assim, comparada ao carnaval atual, a proposta é excelente – se mantida a estrutura da ideia inicial – e merece o apoio de todos os liberais e tributaristas que ajudaram a construir a crítica ao modelo vigente e o senso de urgência na sociedade. Apesar disso, para o meu espanto e desespero, tenho visto diversas pessoas que admiro e respeito, muitas delas liberais, falando absurdos e encabeçando narrativas estapafúrdias para tentar evitar a mudança do atual sistema tributário.
Ressalvo que não se está aqui afirmando que não existam liberais e conservadores com argumentos sensatos, como o da renúncia à disrupção contundente de elementos da estrutura jurídica. Contudo, ainda assim, me parece um grande equívoco. Entendo esse momento como uma oportunidade de corrigirmos décadas de entulho normativo que distorcem a nossa sociedade, o mercado e a ação dos indivíduos. Algo que há décadas seria impensável e que é uma conquista do liberalismo brasileiro, que sempre foi discreto, e conseguiu empurrar o assunto através da janela de Overton.
Justamente por isso, me parece inaceitável que pessoas que se consideram liberais estejam dispostas a renunciar a mudança de algo que sempre foi a nossa maior pauta, que representa integralmente o abuso do indivíduo pelo estado. Alguns desses liberais merecem especial represália, pois no momento, se colocam contra a reforma por interesses setoriais – sempre eles. Alguns porque atuam no setor de serviços e talvez sejam mais tributados, proporcionalmente, na unificação da tributação entre bens e serviços – algo que os liberais sempre defenderam. Outros porque estão ligados a entes subnacionais ou instituições que se sobressaem no atual carnaval tributário.
Dentre esses liberais, os únicos que se salvam são aqueles que estão recebendo honorários privados para engolir esse discurso. Eles estão lá a trabalho. Os demais estão traindo os indivíduos em favor dos coletivos, das classes e das minorias organizadas – função para a qual já tínhamos muitos agentes políticos no país. Apesar disso, ainda há espaço para reverter o curso.
O texto final do grupo de trabalho – que, pelo relatório apresentado, teve por objetivo agredir a proposta inicial – ainda não foi divulgado. Uma vez divulgado, aqueles que se intitulam liberais e estão em posições de poder terão de fazer uma escolha: apoiarão aquilo que sabemos ser o melhor para os indivíduos que vivem neste país e trabalhar para restaurar o sentido do projeto original ou se renderão aos interesses setoriais, minando a proposta com emendas encomendadas ou apoiando reformas falsas que vagueiam sem rumo no Congresso Nacional, advogando para que as coisas permaneçam como estão enquanto a marchinha de carnaval embala a festa.
*Por Gustavo Fernandes, do Instituto de Estudos Empresariais (IEE).