Todos nós, interessados em nossa história nacional, nutrimos a percepção de um Brasil marcado por um Executivo forte e poderoso, e, na maioria das vezes, confundido com a própria pessoa do líder empossado na cadeira presidencial. Não à toa, o nome, os discursos e até os trejeitos do presidente de plantão povoam boa parte das nossas conversas durante todo o seu mandato, enquanto as imagens dos parlamentares costumam seguir engavetadas no escaninho de nossas memórias, pinçadas em ocasiões esparsas, e, em geral, como meras figuras de apoio ou contraponto ao grupo ligado ao Planalto. Tampouco foi coincidência que, durante toda a nossa trajetória republicana, a indicação de nomes ao STF tenha sido barrada uma única vez, nos distantes tempos do Marechal Floriano Peixoto. Portanto, a aprovação ontem, pelo Senado, do advogado Cristiano Zanin à próxima vaga na corte não causou grande estarrecimento.
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A surpresa, se tiver havido alguma, se referiu antes às circunstâncias em torno da nomeação que ao fato em si. Afinal, pelo menos na última década, o Dr. Zanin, amigo de Lula, atuou como advogado do atual presidente, o que já teria sido empecilho suficiente para justificar a impossibilidade absoluta da realização da própria sabatina, devido à violação frontal ao princípio constitucional da impessoalidade. Para além de seus serviços jurídicos, Zanin ainda protagonizou a reviravolta na narrativa sobre fatos relevantes da última década judiciária, tendo, em colaboração oficiosa com togados de cúpula nomeados por seu cliente, trabalhado em prol do descrédito das operações anticorrupção, e da vitimização de autores de malfeitos, apesar das provas sobre vultosos saques ao erário. Assim, a escolha do causídico não foi pautada por parâmetros técnicos, mas pela motivação politiqueira de conferir legitimidade a todo um clã político que, há alguns anos, só conseguia mesmo dominar as manchetes policiais.
Contudo, diante de tamanha excepcionalidade institucional marcada por mordaças e demais irregularidades praticadas pelo poder não-eleito, nossa Câmara Alta, incapaz de tolher o personalismo do Executivo, vergou-se docilmente à opção deste para a composição de nossa cúpula judiciária. Em meio a risinhos, mesuras, e ao abuso do adjetivo “ilustre” em referência a alguém que sabidamente não trouxe luz à ciência jurídica, nossos senadores, incluindo os ditos de oposição, desperdiçaram um precioso tempo com sabujice, com indagações estranhas ao âmbito de atuação de um futuro togado, com outras insuscetíveis de resposta, e até mesmo com algumas que só propiciaram espaço para que o sabatinado vendesse sua imagem como um “arauto das virtudes”.
De fato, não foram poucos os questionamentos sobre aborto, equiparação salarial entre os gêneros, e demais pautas legislativas, sobre as quais, portanto, não caberia a um magistrado opinar. Igualmente inócuas foram as diversas questões acerca da demarcação de terras indígenas (marco temporal), assunto sobre o qual um postulante à toga não poderia ter emitido manifestações, por tratar-se de assunto pendente de julgamento. Na mesma categoria de “inutilidades”, se incluíram os temas cujos esclarecimentos teriam decorrido da simples análise das condutas recentes de Zanin, como, por exemplo, a inquietação, externada por mais de um senador oposicionista, sobre o Inquérito das Fake News e as restrições à liberdade de expressão. Ora, nesses tópicos, não parece óbvia a postura de um causídico que, há alguns meses, em plena corrida eleitoral de 22, pleiteava a reiterada censura a publicações da mídia e a materiais de campanha, e acusava, com frequência, os oponentes do então candidato Lula da prática supostamente ilícita de disseminação de “desinformação”?
No rol muito estreito de perguntas ingênuas, podemos inserir os poucos questionamentos sobre uma futura declaração de impedimento/suspeição, por parte de Zanin, em processos envolvendo Lula e a Operação Lava Jato, instando, assim, o advogado à prestação do compromisso solene de abster-se de apreciar casos relativos a seu amigo e ex-representado. Quase uma declaração juramentada emitida, em cartório, e que o futuro togado tivesse de cumprir, sob as penas da lei. Qual lei? Aquela vigente no país, ou qualquer uma que vier a ser ditada pelo próximo supremo juiz? Infelizmente, a ingenuidade, bela virtude em âmbito privado, pode levar a tropeços na esfera política. Sobretudo em um país de fraca institucionalidade, como o nosso.
Contudo, na tarde de ontem, bem mais intrigantes que todas as perguntas formuladas foram os silêncios, tanto em réplica a certas colocações quanto acerca de temas que não poderiam ter sido omitidos. Por exemplo, causou constrangimento a cena durante a qual o senador Randolfe Rodrigues bradou, ao arrepio das provas, a habitual acusação da esquerda sobre um “conluio entre procuradores e o juiz” no período lavajatista, sem que um parlamentar sequer levantasse a voz para defender a honra de uma das figuras atacadas, atual membro daquele colegiado e que não mais se encontrava no recinto naquele momento. Da mesma forma como foi embaraçoso ouvir de Zanin a ladainha de que seu ex-cliente Lula teria sido “inocentado”, em uma mentira ou, pelo menos, um atecnicismo jurídico que nenhum dos presentes teve a ousadia de refutar.
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Quanto à biografia recente do advogado, foi ensurdecedor o silêncio sobre a operação policial intitulada Esquema S, que havia apontado o sabatinado como um dos chefes de um suposto esquema de tráfico de influência e desvio de recursos. Operação, frise-se, encerrada por uma suposta ausência de provas, embora o próprio magistrado tivesse cogitado da possibilidade de não-prestação de serviços advocatícios pelos causídicos envolvidos. Ora, não teria sido, no mínimo, intrigante ouvir a versão de Zanin sobre fatos capazes de afetarem diretamente sua reputação ilibada? No entender dos parlamentares presentes à CCJ, porém, tal enredo pôde perfeitamente passar despercebido no processo de concessão de uma toga suprema.
No curso dos últimos anos, cada um de nós dispôs de elementos suficientes para formar seu próprio juízo sobre o causídico. Ontem, o sabatinado não foi Zanin, mas o Senado, posto à prova quanto à sua capacidade de atuar, com autonomia, no âmbito do chamado sistema de freios e contrapesos. E, para a maior desolação de todos nós que pagamos caro pelo funcionamento das instituições, foi reprovado e apequenado diante dos demais poderes. Que saibamos escolher melhor os eleitos na próxima legislatura.
*Por Katia Magalhães