*Por Marcus Vinicius Dias
Quando o império comunista russo vivia os seus estertores e o Mr. Gorbachev afiava a picareta para, no lugar da foice e do martelo, derrubar o muro da vergonha em Berlim, o historiador francês Henry Rousso, em 1987, publicava sua célebre obra que cunharia, pela primeira vez, o termo negacionismo, numa tentativa de diferenciar uma revisita histórica legítima dos fatos ocorridos na II Guerra Mundial, de uma injustificada negação, com motivações políticas, do genocídio monstruoso do Holocausto judaico perpetrado pelo Estado totalitário nazista. A partir dali essa palavra passou a circular como sinônimo da negação de uma realidade científica, “incomoda”, a determinados grupos.
Recentemente, esse termo, que transitava majoritariamente nos meios acadêmicos e intelectuais, passou a fazer parte do vocábulo jornalístico e político de modo corriqueiro, de forma que comumente pessoas e grupos que discordavam de verdades auto evidentes, assim como as vozes discordantes do senso comum fossem, igualmente, taxadas de negacionistas. Justamente a mesma confusão terminológica que motivou ao francês publicar o seu “A síndrome de Vicky”.
Durante a pandemia, que até outro dia nos assolava, houve por parte da sociedade um clamor pela valorização da Ciência _ filha instrumental da Filosofia e, portanto, amante da Verdade _ como não se tinha notícias anteriores. Argumentos falaciosos em defesa de práticas e métodos claramente anticientíficos foram, imediatamente, rechaçados por todos e, aqueles exóticos que vinham ao debate público defender suas opiniões claramente distorcidas da realidade _ seja por conveniência política ou por sua visão míope dos fatos _ foram rotulados, de pronto, como inimigos da Ciência, da realidade, da verdade e, por consequência, foram nominados como negacionistas.
Em que pese a frequente inexatidão no uso do termo ter ocorrido, e isso acabar por inibir, muitas vezes, o questionamento sadio, legítimo e bem-vindo do qual Rousso falava, o saldo positivo, de alertar a sociedade para a importância da defesa da realidade imposta empiricamente pela verdade dos fatos, é um legado que nos pode ser útil como civilização doravante. Nesse sentido, saiu a Ciência, e seu método inaugurado por Aristóteles em sua Dialética, fortalecida.
Na esteira do apoio social a estas verdades empiricamente observadas, nos resta a esperança de que o espírito coletivo de apreço às ciências médicas, visto durante a pandemia, alcance também as ciências econômicas. Especialmente no Brasil. E nesse sentido, vale a pena uma visita aos dados e resultados que a Ciência nos mostra acerca de verdades econômicas que, infelizmente, alguns muitos seguem negando.
Segundo dados públicos e oficiais do Fundo Monetário Internacional (FMI), o Brasil tinha em 1980 uma renda per capita anualizada, em dólar, de 11,4 mil, passando a ter em 2022 algo em torno de 15 mil. Neste mesmo período, nosso vizinho Chile saiu de 8,5 mil dólares para 24,6 mil. Na outra direção, a tão falada Venezuela tinha a maior renda per capita da América Latina em 1980, de cerca de 20,3 mil. Segundo o FMI, em 2022, a renda naquele país caiu para míseros 6,1 mil dólares.
Saindo da América Latina e indo para o outro lado do mundo, o mesmo FMI nos mostra que a Coréia do Sul, neste mesmo intervalo de tempo de 1980 a 2022, abandonou uma renda per capita anual de cerca de 5,5 mil dólares e saltou para 45,3 mil. Possuía em 1980 a metade de nossa renda per capita e, 40 anos depois, nos ultrapassa em três vezes. E, nesta mesma pegada, a minúscula Cingapura saiu de uma renda per capita de cerca de 22 mil dólares por ano para impressionantes 112 mil!
A realidade inegável destes números se impõe aos nossos olhos. Partimos todos, em 1980, de um quadro clínico econômico similar. Numa analogia médica, aproveitando o espírito que atualmente nos contagia, podemos imaginar estes países como pacientes expostos ao risco de uma virose potencialmente mortal. A alguns foi aplicada a vacina revolucionária de RNA recombinante chamada economia de mercado do capitalismo; a outros o remédio antimalárico do socialismo, ou o placebo do intervencionismo econômico. Os resultados, inegáveis por argumentos racionais, estão expostos acima.
No final de 1979 e início de 1980 ocorreu uma gravíssima epidemia de poliomielite nos estados de Santa Catarina e Paraná. A decisão estratégica para conter essa mazela foi, num curto espaço de tempo, a vacinação em massa da nossa população. Disto, neste mesmo 1980, surgiu a motivação para a criação do Dia Nacional de Vacinação, com o ousado e corajoso objetivo de vacinar todas as nossas crianças de zero a cinco anos. Também em 1980, a renda per capita do Brasil era equivalente a 36% da norte americana. Em 2022, caímos para cerca de 23%.
Podemos supor que escolhemos o remédio errado e eles a terapêutica acertada. Ou podemos atribuir isso à grande conspiração mundial que visa a maquiar a realidade econômica do planeta em nome do grande inimigo oculto disfarçado de capital. Mas o coerente e razoável a ser feito é evitar a negação e abraçar, tal como defendido em tempos pandêmicos, a Ciência e, de modo assertivo, denominar de negacionistas aqueles que, diante de todas as evidências, teimam em não admitir estas verdades.
Ao Brasil de 2023 só resta uma alternativa intelectualmente honesta: aceitar a verdade empírica da Ciência demostrada nos dados das últimas 5 décadas e se vacinar, de vez, contra o negacionismo anticapitalista. Do contrário, nos uniremos ao atraso anticientífico, nos sobrando apenas a defesa heterodoxa do supositório antimalárico como política econômica.
*Médico e servidor federal, com MBA em Gestão em Saúde pela USP e Mestrado em Economia pelo IBMEC