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Verdades sinceras me interessam

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Numa democracia jovem como a brasileira que, numa tradição republicana de menos de 150 anos, experimentou – ao contrário dos Estados Unidos – desde sua fundação diversos regimes autoritários e sem o devido referendo popular, é compreensível que a noção de Estado se confunda com a de governo, de modo que a cada troca de grupo político no poder se tenha a pretensão de “refundar” nação. É justamente por essa imaturidade institucional que mesmo agentes técnicos que ocupam espaços de poder político usem e abusem de retórica e narrativa que vise a desqualificar toda e qualquer ação de gestão de seu antecessor e se coloque como “salvador” e/ou “reconstrutor” das politicas públicas no país. Tal prática, diga-se de passagem, é comum aos diversos campos ideológicos, de maneira que diz muito mais sobre o grau de evolução da real compreensão dos processos administrativos da nação, do que propriamente sobre um grupo político em particular.

O hábito anglo saxão de se discutir “o quê” ao invés de “quem” no debate público brasileiro é ignorado. No entanto, em virtude da influência da formação em Medicina, em que somos treinados a opinar sobre casos e quadros, e não sobre médicos e escolas, me policiei, na medida do possível, a buscar discutir as políticas públicas a partir de resultados alcançados e não em virtude de seus formuladores. No âmbito da saúde, por exemplo, não importa para análise de desfechos se a política de Medicamentos Genéricos foi idealizada por uma gestão social democrata, de centro. Neste mesmo sentido, o programa Farmácia Popular tem seu mérito em si como estratégia, e não em decorrência de ter sido inaugurado por um governo de esquerda. Ainda, seguindo esta lógica, o programa Previne Brasil tem suas virtudes em sua lógica própria de fomentar a atenção básica nos municípios, e não pelo fato de ter sido formulado e iniciado por uma administração de direita.

Em face a polarização política dos últimos 4 anos, assistimos um resultado eleitoral, na majoritária nacional, apertado, do tipo 51% a 49%, ou seja, sem ampla e convicta aceitação popular por parte do vencedor, e sem o expressivo e incontestável rechaço da sociedade ao derrotado nas urnas. Tal fato impõe habilidade a quem ganhou, para governar para todos, e responsabilidade a quem perdeu, para saber que não fala em nome da maioria, por óbvio. Nesse cenário, após 6 meses da nova gestão, seria desejável para o país que quem é governo e quem é oposição olhem para frente, para o futuro, uma vez que o pleito se encerrou e os problemas da sociedade são concretos e complexos. Olhar para o passado, neste caso, deveria apenas ser para se discutir quais as políticas públicas produziram resultados positivos, e quais não alcançaram o desejado, de tal sorte a se aperfeiçoar, revogar ou ampliar uma ação construída preteritamente com base em “o quê” foi entregue à sociedade, e não com base em “quem” as propôs.

Servi ao país no último ano da gestão passada como secretário no Ministério da Saúde, órgão ao qual sou vinculado formalmente há duas décadas, como servidor de carreira, e afetivamente há quatro gerações, uma vez que sou neto e bisneto de servidores desta pasta. Associado a isso, como médico, foi uma enorme honra, em que pese o tamanho do desafio, ter podido, em nível central, olhar o SUS a partir de uma visão panorâmica, com suas tensões e contradições, mas também com sua beleza e onipresença em nossos mais de cinco mil e quinhentos municípios. Conhecer a realidade de um município na região norte, num mesmo dia em que se sabe dos desafios de outro na região sul, é uma experiência incrível e inestimável. Saber que um paciente pode receber um melhor atendimento em hospital, no interior do centro oeste, do que seu irmão gêmeo, com o mesmo quadro clínico, em uma unidade de saúde numa capital do sudeste é algo que só uma passagem por um órgão central como um Ministério pode nos proporcionar, de maneira que o ano de 2022 será sempre emblemático para minha carreira, pela oportunidade que em Brasília tive de conhecer, olhando de cima, o nosso SUS.

A partir desta experiência in loco, confesso que me causa uma enorme estranheza ouvir termos como “terra arrasada”, “desmonte do Ministério”, “apagão da gestão” etc, como se nada – absolutamente nada – de positivo tivesse sido feito na gestão que saiu, e que toda e qualquer iniciativa adotada pelo Ministério da Saúde nos últimos quatro anos fosse inválida, numa espécie de ilegitimidade administrativa que beira ao sedevacantismo. De pronto poderia aqui falar sobre a criação da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde, ADAPS, órgão inovador que visa a qualificação da tão falada atenção básica no Brasil, por meio de iniciativas, entre outras, de levar profissionais médicos a lugares onde tradicionalmente o mercado não foi capaz de os levar. Poderia aqui citar também a iniciativa histórica de trazer para o Brasil, no meio de uma pandemia mortífera, a mesma vacina que Sua Majestade, a falecida Rainha da Inglaterra, Elizabeth II, teve acesso. Me refiro a transferência de tecnologia da vacina da Universidade de Oxford contra COVID 19 para a Fundação Osvaldo Cruz, vinculada ao Ministério da Saúde que, à época, era presidida pela hoje Ministra de Estado da Saúde, a qual, menciono aqui, tive a honra de ter como colega de Ministério, tanto na gestão passada quanto na que a antecedeu.  

Mas prefiro aqui citar apenas políticas públicas que tive a oportunidade de ver nascer durante o período que lá estive. Políticas estas que foram debatidas internamente com um corpo técnico que por anos estava no Ministério, tendo portanto larga experiência, inclusive  já tendo servido à sociedade em diferentes governos, de distintas orientações ideológicas. Foram políticas por diversas vezes discutidas com parlamentares ligados à saúde, de modo que preocupações legítimas de pleitos difusos da sociedade foram levados em consideração. Ainda neste sentido, por diversas vezes, vi representantes da sociedade civil participarem destas discussões e terem suas contribuições acatadas nas portarias publicadas. E, registro aqui, que também houve políticas importantes que foram iniciadas na gestão passada que contaram com ampla discussão e apoio da instância colegiada maior do SUS e foram pactuaras em Comitê Intergestores Tripartite, a CIT, com representantes eleitos por secretários estaduais e municipais de saúde.

Em 2022 vi de perto nascer a pioneira iniciativa de levar os conceitos da saúde baseada em valor ao SUS por meio do QualiSUS Cardio, que proporcionava, por adesão, recursos orçamentários adicionais aos gestores cujos prestadores eram ranqueados de acordo com critérios de qualidade assistencial objetivos, de modo que quem fizesse mais, e melhor, receberia um custeio extra, sem deixar de incentivar àqueles cujos resultados ficavam abaixo da expectativa, de modo a lhes oferecer um recurso adicional que os ajudasse a aperfeiçoar seu desempenho.  Também fui testemunha da criação histórica da portaria que regulamentou, no âmbito do SUS, a Telesaúde, ganho permanente que a pandemia nos trouxe. Por meio dela, a necessária segurança para se avançar e seguir com essa estratégia foi assegurada. Digno de nota, também, foi o inédito acordo de compartilhamento de risco assinado entre o Ministério e uma importante farmacêutica. Através dele, o remédio mais caro do mundo passou a ser adquirido por aproximadamente metade do valor de compra pago nos processos de judicialização e, ainda, de modo parcelado e atrelado ao desfecho assistencial dos pacientes que o utilizavam.

O intuito aqui não é propaganda. Nem tampouco fazer apologia política de um grupo em particular em detrimento do outro. Seguramente houve falhas e equívocos. E assim como confesso ter tido pouca – ou nenhuma – influência nestas politicas exitosas que foram criadas, assumo de modo compartilhado os erros de decisão que ocorreram no período em que tive o privilégio de participar da alta gestão do SUS federal. Mas o ponto aqui não é exaltar ações passadas ou servir de cordeiro a elas. O cerne da minha argumentação é que, sinceramente, não houve inação por parte do Ministério nos últimos anos, assim como também não houve destruição do SUS. Falo isso não porque tenha a pretensão de defender um governo do qual fiz parte; nem tampouco para fazer justiça aos milhares de servidores do Ministério da Saúde que durante os anos de pandemia deram seu sangue pelo país e ainda lá seguem se doando, na medida em que muitos que serviram ao meu lado continuam ainda hoje trabalhando pelo Brasil no famoso prédio do bloco G da Esplanada. O ponto central que gostaria de discutir aqui é que além de não ser produtivo seguir, indefinidamente, apontando um pretenso desmonte do Ministério pela gestão anterior, essa narrativa simplesmente não é compatível com a realidade, incontestável, dos fatos.

*Marcus Vinicius Dias, médico e servidor do Ministério da Saúde, com MBA em Gestão em Saúde pela USP e Mestrado em Economia pelo IBMEC

Aviso

As opiniões contidas nos artigos nem sempre representam as posições editoriais do Boletim da Liberdade, tampouco de seus editores.

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