Por Kátia Magalhães*
Marco temporal: prossegue o clima de insegurança
Em um dos julgamentos mais impactantes do ano, o STF examina se indígenas só podem reivindicar terras por eles ocupadas antes de 5 de outubro de 88, data da promulgação da Constituição (tese favorável ao marco temporal), ou se podem fazê-lo com base na mera ancestralidade étnica (tese contrária ao marco). A prevalência da posição pró-marco é crucial à manutenção da segurança jurídica, com o reconhecimento, pelo direito, de uma situação de fato (posse) anterior à vigência da atual ordem constitucional.
Até agora, quatro togados se opuseram ao marco, enquanto dois votaram favoravelmente a ele. A sessão foi suspensa, e será retomada na semana que vem. A sombra da incerteza insiste em nos rondar.
O Supremo e a maconha
O tribunal retomou o exame da liberação do porte de maconha, com votos dos Ministros Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Fachin e Barroso favoráveis à descriminalização do uso. Em aparente divergência de seus pares, o Ministro Zanin se posicionou em sentido contrário à descriminalização do uso pessoal da substância. Porém, assim como seus colegas, entendeu ser necessária a estipulação, pela corte, de critérios de distinção entre traficantes e usuários.
Até o momento, todos os seis togados se uniram em torno da busca de parâmetros objetivos para a fixação da fronteira entre porte individual e crime. No entanto, segundo a Lei de Drogas, o “consumo pessoal” deve ser definido pelo juiz de acordo com a natureza e a quantidade do entorpecente, e com as “circunstâncias sociais e pessoais do agente”, ou seja, à luz de aspectos subjetivos, e caso a caso. Assim, ao procurarem objetividade em norma tão subjetiva, os supremos juízes mais uma vez “inovaram”.
Após o retorno do processo do gabinete do Ministro André Mendonça, que pediu vista, vamos ver se os magistrados irão insistir em atuar como legisladores, e quais serão as novas regras sobre o assunto.
TJ/RJ libera suposto líder da “máfia dos cigarros”
A 7ª. Câmara Criminal do tribunal revogou a prisão temporária de Adilson Coutinho Oliveira, suspeito de comandar a chamada “máfia dos cigarros” no Estado, e de ser o mandante do assassinato de milicianos. A prisão, requerida pela Delegacia de Homicídios com o aval do Ministério Público, havia sido decretada pela 1ª. Vara Criminal do Rio, tendo tornado Adilson foragido por algumas semanas. Contudo, a segunda instância da justiça carioca aceitou um pedido da defesa e revogou a ordem contra o suspeito, sob a alegação de que as provas seriam “frágeis” para justificarem a medida contra Adilson.
O acusado, acusado de chefiar uma quadrilha de jogo do bicho e de venda ilegal de cigarros, ganhou notoriedade em maio de 2021, quando, em plena pandemia, promoveu uma festa de luxo para 500 convidados, no Copacabana Palace.
STF reconhece guardas municipais como órgãos de segurança pública
Com voto de desempate de Zanin, a corte formou maioria para admitir que as guardas municipais integram o sistema único de segurança pública (SUSP). Na prática, o julgado apenas reforça a responsabilidade da corporação na prevenção e inibição de infrações penais e administrativas, assim como de condutas que ameacem bens e instalações municipais. Outrossim, como declarado pelo presidente da Associação dos Guardas Municipais do Brasil (AGM), a decisão permite à categoria avançar rumo a benefícios, como, por exemplo, aposentadoria especial.
Acusado de fraude em licitações é tido como “inviolável” pelo TJ/SP
A mera emissão de pareceres não pode servir de fundamento à instauração de ação penal. A partir desse entendimento, o tribunal paulista trancou medida criminal proposta pelo Ministério Público contra procurador do município de Pontalinda (SP), acusado de participação em fraude a licitações mediante a manifestação de opiniões favoráveis a contratos “suspeitos” com o poder público. A decisão se baseou em precedente do STF, segundo o qual pareceristas (advogados) somente podem ser responsabilizados em sua atuação profissional nos casos restritos de erro grosseiro ou culpa.
O mais delicado, em assuntos como esse, é traçar o limiar entre a falha inevitável para o causídico e sua má fé/seu conluio com beneficiários do negócio ilícito. Zona cinzenta, capaz de dar margem ao arbítrio e à impunidade.
Lavagem de dinheiro: STJ dificulta acesso da polícia ao Coaf
Por maioria, a 6ª. Turma do tribunal declarou ilícitos relatórios de inteligência obtidos por um delegado de polícia sobre empresários suspeitos de lavagem de dinheiro. Segundo os togados, nem o Ministério Público nem as autoridades policiais podem solicitar dados sigilosos à Receita Federal sem ordem judicial. Para o relator, Ministro Antônio Saldanha, permitir contato direto entre o MP e o Coaf seria atribuir a órgãos de investigação o poder de obter informações confidenciais. “Por que não pedir uma autorização judicial?”, indagou Saldanha.
Contudo, como reconhecido pelos votos vencidos dos Ministros Rogério Schietti e Laurita Vaz, o Coaf, nos dados enviados à polícia, sinalizou apenas a existência de movimentações bancárias atípicas, sem detalhes sobre a atipicidade. E, acrescento eu, a requisição, seja pelo MP (fiscal da lei) ou pela polícia, de autorização ao juízo pode propiciar aos meliantes tempo suficiente para maquiarem seus malfeitos, e até para se evadirem. Nessa esfera de crimes praticados por ricos e poderosos, não é recomendável priorizar e eficácia das providências contra os delinquentes, e deixar de lado tantas firulas?
Graças a Toffoli, almirante Othon tem acesso a mensagens hackeadas
Em mais um episódio de transformação das provas ilícitas obtidas pelo hacker condenado Walter Delgatti em “material válido”, o Ministro Dias Toffoli concedeu ao almirante Othon Luiz Pinheiro amplo acesso às mensagens da chamada “vazajato”, conversas nunca periciadas e que comprovariam a parcialidade dos protagonistas da Operação Lava-Jato.
No período lavajatista, o militar e ex-presidente da Eletronuclear chegou a ser preso e condenado por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, devido a envolvimento em esquemas de corrupção em obras da usina nuclear de Angra-3.
Toffoli e o hackeamento (2)
O togado também anulou provas da planilha da Odebrecht que incriminavam o ex-senador Delcídio do Amaral. Ex-líder do governo Dilma, e investigado pelo recebimento de verba do PT em “caixa dois” de sua campanha ao governo do MS, Delcídio foi preso no âmbito da Lava-Jato, e, logo em seguida, fechou acordo de colaboração premiada.
Porém, o Judiciário tornou a lançar mão de mensagens hackeadas e ilícitas para derrubar todas as provas legitimas obtidas na maior operação anticorrupção da História. Imagem caricata do Brasil atual.
Com voto contrário de Zanin, STF acata ação de indígenas no MS
Por maioria, o STF abriu investigações sobre violência supostamente praticada pela Polícia Militar do Mato Grosso do Sul contra indígenas das etnias Guarani e Kaiowá. A pedido da Apib – Associação dos Povos Indígenas do Brasil, a corte avaliou se deveria averiguar os episódios violentos relatados, e obrigar a União a apresentar um plano de ações objetivas para o enfrentamento dos alegados ataques.
Vencidos, os Ministros Gilmar, Zanin, André Mendonça e Nunes Marques negaram o prosseguimento da ação, pois entenderam que ela “não especificava as autoridades responsáveis pelos atos questionados”, e que a apreciação do caso demandaria “exame das provas a respeito da posse e propriedade das terras, (…) o que já está sob análise do Poder Judiciário.” Contudo, prevaleceu o entendimento de que o Supremo deveria intervir no assunto, diante da ocorrência de “lesão à dignidade da pessoa humana”. Ao que tudo indica, a cúpula judiciária tornará a fazer as vezes de formuladora de políticas públicas.
Trans na Justiça do Trabalho
A demora de empresa na adequação de documentos ao nome social de empregado gera o dever de indenizar. Assim decidiu o TRT da 4ª. Região que, reformando sentença de primeira instância, impôs à firma empregadora a obrigação de pagar R$ 5 mil a trabalhador trans, pelo “inegável constrangimento e sofrimento” durante o período de espera pela alteração de sua identificação no crachá. Como de hábito, as cortes brasileiras, em particular, as trabalhistas não hesitam em “fazer muito barulho por nada”, e impor ônus pecuniários a quem gera emprego e renda.
Carta Magna em nheengatu
No apagar das luzes de seu mandato à frente do Supremo, a Ministra Rosa Weber entregou à Biblioteca Nacional uma versão da nossa Constituição Federal no idioma indígena. Difícil é conceber a solução do tradutor para adequar conceitos como deputados, senadores, ações diretas de inconstitucionalidade e tantos outros à língua falada em um grupo social que não atingiu o mesmo nível de complexidade que o nosso. Algumas conjecturas linguísticas como passatempo…
“Democracia inabalada”?
Sob esse título – sem a interrogação, por óbvio -, acaba de ser lançado um e-book do STF sobre os atos do 08.01, obra que, segundo Rosa Weber, “condensa a indignação, a força e a resiliência na defesa da democracia constitucional”. O livro conta com fotos do que Rosa designou como “cenário dantesco de devastação”, assim como de autoridades judiciárias reunidas com staffs de outros poderes. Nos próximos dias, será lançado um filme-documentário sobre o mesmo tema.
Considerando que, à luz da Constituição, da legislação processual e da norma orgânica da magistratura, juízes não podem opinar sobre ações em curso, e considerando que as práticas de vandalismo na Praça dos 3 Poderes aguardam julgamento da própria corte, deixo para você a tarefa de refletir sobre toda a extensão da expressão escolhida para assinalar as novas “obras supremas”.
*Kátia Magalhães é advogada, liberal e apaixonada por arte e cultura