Por Kátia Magalhães*
Por ampla maioria, STF condena o primeiro réu pelos atos do 08.01
Pena de 17 anos de prisão, multa de R$ 44 mil e danos morais coletivos de R$ 30 milhões. Essa foi a condenação imposta ao técnico de saneamento Aécio Lúcio Costa Pereira por suposta tentativa de golpe de estado, de deposição do atual presidente Lula, de abolição do Estado de Direito e de restrição ao exercício dos poderes constitucionais. Os togados ainda formaram maioria para a condenação por associação criminosa e dano ao patrimônio público.
A postura condenatória do relator Ministro Alexandre de Moraes foi acompanhada pelos Ministros Zanin, Fachin, Barroso, Fux, Toffoli, Carmen Lúcia, Gilmar e Rosa Weber. O Ministro André Mendonça votou pela absolvição apenas pelo crime de golpe de estado, enquanto o Ministro Nunes Marques foi o único a votar pela condenação tão somente por crime de dano.
Esse foi o saldo dos 9 meses de gestação da primeira de uma série de aberrações jurídicas sobre o assunto. São vidas de pessoas sem foro privilegiado, presas por meses sem que seus advogados tivessem sequer acesos aos autos, “julgadas” por magistrados que não dispõem de atribuição para tanto, e cujas condutas não estão sendo examinadas caso a caso. Afinal, segundo Moraes, “a individualização detalhada das condutas encontra barreiras intransponíveis”. Mais uma das “inovações” de que tanto se orgulha o togado.
Mais 08.01: “todos devem responder pelo resultado comum”
Na esteira da PGR, o tribunal considerou os atos do 08.01 como crimes multitudinários, ou seja, aqueles cometidos sob a influência de multidão em tumulto. No entanto, bem longe da tese da procuradoria e dos magistrados, a existência de “turba” inflamada é mencionada pela legislação como fator de redução da pena, diante da frequente dificuldade de indivíduos de resistirem ao chamado da massa.
Além disso, nem mesmo nesses casos a lei autoriza juízes a viraram as costas ao princípio constitucional de que cada réu deve responder pela conduta que lhe for atribuída. Porém, nossos togados de cúpula têm a certeza de serem “supremos”, e, desse modo, situados acima da própria Constituição. Assim como o foram, um dia, os “atos institucionais” do regime militar. Excrescências vêm e vão ao longo da História.
Procuradores x Toffoli
A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) recorreu da decisão do Ministro Toffoli que havia considerado imprestáveis todas as provas oriundas do acordo de leniência com a Odebrecht, e determinado à AGU a apuração de supostas irregularidades por parte dos protagonistas da Operação Lava-Jato. Como bem enfatizado pela ANPR, a celebração do acordo seguiu nossa legislação, assim como todos os tratados internacionais sobre o tema. Ainda segundo a Associação, eventuais abusos de agentes públicos deveriam ser apurados em ação própria, movida pelo prejudicado, o que jamais ocorreu.
Agora resta aguardar a próxima “escusa” suprema ao enxovalhamento público da maior operação anticorrupção da nossa História.
Odebrecht 2: Dino mente em juízo?
No trecho sobre pretenso descumprimento dos trâmites exigidos, Toffoli se baseou em informação da pasta de Flávio Dino de que os sistemas Drousys e MyWebDay (registros de propina da Odebrecht armazenados na Suécia e na Suíça) não teriam sido enviados ao Ministério Público brasileiro com a devida anuência do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), órgão do Ministério da Justiça atuante em cooperações internacionais. Contudo, poucos dias depois, o próprio MJ se desdisse, e reportou a localização de provas da efetiva cooperação com a Suíça nos anos de 2016 e 2017.
Após quase 10 meses de “casa”, ou Dino ignora dados relevantes sob sua responsabilidade, ou mente diante de togados. Em democracias “absolutas”, a primeira situação seria motivo razoável para seu afastamento, enquanto a segunda corresponderia à chamada litigância de má fé, com multa e até abertura de investigações criminais. Já a democracia “relativa” segue outra lógica.
Moraes homologa delação de Mauro Cid
Em pleno sábado, o togado homologou o acordo de delação premiada do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, e autorizou sua soltura. O acordo foi celebrado no âmbito do chamado inquérito das milícias digitais e das investigações sobre falsificações de cadernetas de vacinação e de uma suposta venda ilegal de presentes recebidos pelo ex-presidente. O Ministério Público (PGR) foi contrário à homologação, por ter sido o acordo negociado sem a sua participação.
Em casos recentes, como os de Sérgio Cabral e Antônio Pallocci, o Supremo anulou colaborações valiosíssimas para a identificação de esquemas de corrupção grossa sob a alegação de ausência do MP durante as negociações. Contudo, ignorando o entendimento vitorioso em sua própria corte, o mesmo magistrado que, no caso Cabral, havia apontado o silêncio do MP como “vício gravíssimo”, agora se mostra receptivo a todas as eventuais provas colhidas junto a Cid sem a participação da procuradoria. E com delator preso por 4 meses!
Afinal, delações necessitam ou não de consentimento do MP? Será que Moraes esqueceu a descrição de Toffoli sobre prisões preventivas para a obtenção de delações como o “Pau-de-Arara do Século XXI”? A insegurança jurídica e o duplo padrão seguem ditando o tom.
O CNJ e a responsabilização de magistrados “politizados”
Togados e servidores do Judiciário suspeitos de envolvimento com os atos de vandalismo do 08.01 serão investigados pela Corregedoria Nacional de Justiça. Em sua decisão, o Ministro Luís Felipe Salomão afirmou que “os atos do dia 8/1 foram apenas o clímax de uma prática discursiva disseminada nos meios de comunicação de massa, que tinha como alicerce uma deliberada desordem informacional voltada a gerar uma crise de confiança e deterioração das instituições republicanas“.
De acordo com a norma orgânica da categoria, magistrados não podem mesmo exercer atividade político-partidária. Curioso, porém, é notar a reverência do Ministro Salomão diante do togado supremo autor de frases como “nós somos a democracia”, “o Judiciário passou a ser um poder político”, e “nós derrotamos o bolsonarismo”, e, em sentido oposto, sua inclemência com magistrados adeptos da disseminação de “desordem informacional”, seja lá o que isso for. Relativização pouca é bobagem.
Ex-desembargador vira alvo da “cólera dos deuses”
Encabeçando a lista do Ministro Salomão está o desembargador aposentado Sebastião Coelho, crítico feroz dos recentes desmandos da cúpula togada, em particular, do Ministro Alexandre de Moraes. Atuando como advogado na defesa do primeiro réu do 08.01, Coelho escancarou, na tribuna do STF, várias irregularidades flagrantes do processo. Em suas palavras: “ninguém discute que houve violência para quebrar vidraças, entrar nos prédios públicos. Mas, a cada um lhes é dado o julgamento conforme a sua participação. Essa é a regra […]. A autoria, a responsabilidade, é na medida da sua culpabilidade.”
Por manifestar sua opinião e exercer a advocacia, atividade tida pela Constituição como essencial à democracia, Coelho se tornou alvo de investigação, e teve quebrado seu sigilo bancário. Assim são tratados os que ousam ser livres por aqui.
O STJ e a progressão de pena para estuprador sem exame criminológico
A gravidade do crime não justifica, por si, a imposição de exame criminológico para avaliação da mudança de regime de pena. Assim entendeu o Ministro Antônio Saldanha Palheiro para determinar que a Unidade Regional de Execução Criminal de Bauru analisasse pedido de progressão a condenado por estupro de vulnerável, sem exigência do criminológico. Tal exame, realizado por equipe multidisciplinar, avalia a personalidade, a periculosidade e até o grau de arrependimento do criminoso.
Segundo o togado, como a lei não menciona o exame como requisito para passagem ao semiaberto, sua realização só pode ser determinada pelo juiz, conforme as particularidades de cada caso. Exatamente como nessa situação, onde tanto a primeira quanto a segunda instâncias justificaram a necessidade da avaliação. Portanto, o ministro incorreu na análise de fatos já apreciados pelos magistrados locais, extrapolando suas atribuições, e ainda abriu caminho para possíveis horas diárias de liberdade a um estuprador, sem a devida avaliação dos riscos.
STJ 2
Em decisão monocrática, o Ministro Sebastião Reis Júnior revogou a prisão preventiva de detido em SP por tráfico de entorpecentes, e que portava 385 gramas de maconha comprada no MS. Segundo Reis, nesse caso de “posse de pouca quantidade de drogas”, medidas alternativas são mais adequadas que a preventiva. Pouca quantidade?
Barroso impõe derrota a autor de ação possessória
Desrespeito ao prazo definido pelo STF para cumprimento de ordens de remoção e despejo durante a pandemia de Covid-19. Esse foi o fundamento do togado para suspender, na canetada monocrática, uma reintegração de posse no município de Mucajaí (RR). Segundo Barroso, as comunidades indevidamente assentadas em terra alheia “devem ser ouvidas, com prazo razoável para a desocupação e com medidas para resguardar o direito à moradia.”
Mais um duro golpe contra a propriedade e a posse legítima.
Rosa e o aborto
A Ministra Rosa Weber liberou para julgamento ação do Psol, que pretende descriminalizar a interrupção da gestação, com anuência da gestante, até a 12ª semana. Mais um caso sobre pauta legislativa que setores da esquerda insistem em judicializar, e que togados cônscios de suas atribuições não poderiam sequer discutir. Porém, a sede de legislar continua voraz.
Por liberdade de expressão, Leo Lins recorre ao Supremo
Na tentativa de reverter as restrições impostas pela juíza Gina Fonseca no âmbito de ação penal movida pelo Ministério Público de São Paulo, o comediante ingressou com uma reclamação junto ao STF. Denunciado por racismo, Lins se acha impedido de divulgar qualquer conteúdo “depreciativo” em razão de raça, etnia, gênero e orientação sexual, de se ausentar da cidade, e ainda tem de comparecer mensalmente ao juízo para “justificar” suas atividades.
A reclamação invoca a proteção constitucional à livre manifestação, com base nos precedentes do próprio STF por ocasião da chamada “polêmica das biografias”. De lá para cá, muita coisa mudou, a começar pelo “entendimento” da corte, que passou a autorizar várias formas de mordaça.
Enquanto o comediante é privado da palavra, instrumento do seu ganha-pão, criminosos perigosos contam com a benevolência de muitas togas. Foi o país que virou uma piada. Aliás, nada engraçada.
*Kátia Magalhães é advogada, liberal e apaixonada por arte e cultura.