Por Marcus Vinicius Dias*
Uma das maiores responsabilidades que um ser humano pode carregar é a capacidade que nos foi dada de influenciar na vida de terceiros. Mais dramático se torna essa ideia quando se coloca em perspectiva que alguns de nós, em face de suas posições na sociedade, conquistadas de maneira legítima, têm o poder, por delegação, de determinar o curso civilizacional de certas situações. Não é de se surpreender que o temor por tamanho poder se instale no coração de homens e mulheres aos quais o destino outorgou tamanha incumbência.
No entanto, tal temor não vem separado da respectiva e proporcional coragem e do equivalente senso de missão. “A quem muito é dado…”, nos ensinou o evangelista que tinha por ofício a Medicina. E nesse cenário, de enorme poder em determinar o curso da História, seguramente, na mesma medida, também será cobrado daqueles que ora se debruçam sobre o debate nacional do momento: o aborto.
Numa tarefa nada trivial, mas não impeditiva de ser enfrentada, Judiciário e Legislativo, com o poder que lhes foi conferido, discutem tal perspectiva, para além daquilo que o legislador e o guardião da lei já decidiram no passado e se encontra pacificado em nossa legislação e jurisprudência sobre o tema.
A questão atual é se é lícito a interrupção de uma gestação, de até 12 semanas de gravidez, em virtude de uma inconveniência de natureza pessoal, seja por qual motivo for, de se levá-la a termo. De um lado, os favoráveis à medida defendem o direito por decidir da gestante; “seu corpo, suas regras”. Do outro, os contrários, alegam que o feto não é um apêndice do corpo da genitora e, portanto, não pode ela dispor sobre o destino dele. No meio, argumentos simplistas baseados em mera escolha, de algo complexo, e argumentos fundamentalistas, de que há ali um desejo divino que deve cumprir sua finalidade.
Fugindo destes pontos, ambos legítimos do ponto de vista argumentativo num debate, me proponho aqui a destacar alguns aspectos práticos, do ponto de vista da saúde coletiva, que me parecem relevantes para uma eventual tomada de decisão por parte daqueles cuja posição permite que sejam determinantes deste tema no cenário nacional.
Sem entrar no mérito de quando começa a vida humana, mas admitindo que ela de fato exista, como ponto pacífico, tomemos como referência as tais 12 semanas de vida intra-uterina como premissa. De pronto há o desafio da determinação exata desta idade gestacional. Os próprios métodos disponíveis para esta estimativa colocam como margem aceitável de erro 1 semana para mais ou para menos, no mínimo. Dito de outro modo, 12 semanas podem, na verdade, serem 11 ou 13.
Outro ponto prático desta questão é que a interrupção gestacional nesta fase requer, usualmente, uma abordagem dita cirúrgica, realizada em ambiente hospitalar, ao menos, de característica eletiva, ou seja, de modo programado, e não em caráter de emergência e/ou urgência. Neste sentido, é razoável supor que, assim como em outras situações de saúde pública, pode haver uma “fila cirúrgica” para tal procedimento.
Sem me alongar, de pronto, já se desenham dois desafios para a adoção de uma legislação que vise a cumprir essa possibilidade: a 1ª é que por uma margem de erro aceitável tecnicamente, pode-se acabar por executar um procedimento em uma gestação de 12 semanas, que na verdade é de 13, o que na prática seria fora da lei e, portanto, crime. A 2ª é a possibilidade real de que uma gestação de 10 semanas entre na fila do aborto do SISREG, mas só seja chamada para a cirurgia quando já tiver completado 14 semanas, o que, pela lei, também seria crime.
Não faltam boas iniciativas de natureza legal que visam ao benefício da sociedade, mas que do ponto de vista prático e civilizacional acabam por gerar um efeito oposto. Há quem defenda, ontologicamente, que certos direitos são inatos e que, portanto, antecedem convenções e criações sociais, tais como o próprio direito à vida, o que ancoraria a posição daqueles que são contrários a esta interpretação que a Suprema Corte se inclina a dar à matéria. Mas também cabe o argumento de que seria, igualmente inato, a liberdade individual que, em última análise, daria guarida aos favoráveis ao “direito de decidir” da gestante.
Em que pese não pareça haver ponto de concórdia entre as partes quando o tema é este em questão, me parece razoável supor que a difícil tarefa de decidir sobre o assunto _ que para alguns cabe ao poder legislativo, e para outros cabe ao judiciário _ encontre como ponto comum a seguinte premissa, amplamente conhecida da classe médica: primum non nocere, ou seja, não piorem aquilo que já não está bom…
*Médico e gestor público, com MBA em Gestão em Saúde pela USP e mestrado em Economia pelo IBMEC.