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Panorama Jurídico – Nº 017 – 24/11/2023

Os principais fatos jurídicos da semana, o que está acontecendo de mais importante nas cortes brasileiras, com a opinião de juristas renomados, em uma linguagem simples e direta

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Por Kátia Magalhães*

Morte de Cleriston: omissão relevante de togados?

O microempreendedor Cleriston Pereira da Cunha, um dos detentos do 08.01, faleceu no presídio da Papuda, em decorrência de severas comorbidades. O réu, preso após ter sido encontrado em acampamento em frente ao Quartel General do Exército no DF, e mantido no cárcere sem indícios da prática de crime de dano e sem um julgamento sequer, apresentava comprometimento crescente em sua saúde, manifestando distúrbios cardíacos, hipertensão e vasculite. Ainda em fevereiro, o ministro André Mendonça havia negado a soltura de Cleriston com base na Súmula 606 do STF – já comentada aqui como o “AI-5” do tribunal! -, que proíbe o exame de habeas corpus contra decisão da corte.  

Durante audiência em julho, o próprio Cleriston reportou sinais de agravamento de seu quadro clínico, tais como desmaios e falta de ar, o que levou a defesa a reiterar a impossibilidade de sua permanência no presídio. Diante de três laudos médicos distintos que atestavam a deterioração das condições físicas do réu, a própria PGR recomendou sua soltura.

No entanto, nem o todo-poderoso relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, nem qualquer de seus pares se dignaram a examinar as petições do advogado ou a manifestação da Procuradoria. O resultado fatal, mais que previsível, não tardou. Pela nossa lei penal, não são apenas os autores de condutas ativas que respondem pela privação consciente da vida de outrem; também são responsáveis todos aqueles incumbidos do dever legal de agir (como, por exemplo, togados, enquanto garantes da integridade dos detentos sob a sua jurisdição), mas que, ainda assim, nada fizeram. Pairam no ar as perguntas óbvias: quem será responsabilizado? Se Cleriston foi arbitrariamente submetido a uma “única” instância suprema, quem irá decidir quem são os responsáveis? Indagações que perpassam o âmbito jurídico, e envolvem o futuro político de toda uma nação.

Moraes requisita informações sobre a morte de Cleriston

O togado solicitou à Direção do Centro de Detenção Provisória, em Brasília, informações sobre a morte do detento, e ainda requisitou “cópia do prontuário médico e relatório médico dos atendimentos recebidos pelo interno durante a custódia.” Ora, se ele não encontrou alguns poucos minutos para examinar todos os laudos médicos juntados aos autos enquanto Cleriston se arrastava como um cão ferido e esquecido na masmorra, agora, de nada adianta mais esse ato teatral. 

Quando um ser humano falível e mortal se sente Deus, seu cinismo pode ultrapassar os limites da própria sanidade.  

Mais Moraes: novos mandados contra envolvidos no 08.01

Em nova fase da dita Operação Lesa Pátria, a PF cumpriu doze mandados expedidos pelo STF contra investigados pelos eventos do 08.01, incluindo duas prisões preventivas e dez medidas de busca e apreensão, em cidades da Paraíba e do Mato Grosso. É inesgotável a sanha da cúpula togada contra pessoas sem foro privilegiado – e, portanto, fora de sua jurisdição! -, e sem indícios concretos da prática de crime de dano.

A caminho, mais uma leva de detenções e outras medidas constritivas manifestamente inconstitucionais e ilegais, destinadas à punição dos ditos “crimes de opinião” por parte de réus enxergados, pelos figurões de toga, como “inimigos da democracia”. Os verdadeiros traidores da pátria são aqueles encarregados de guardar a Constituição e as leis, mas que, na prática, “guardam” mesmo a liberdade e o poder de corruptos notórios de seu círculo próximo. E, de preferência, daqueles defendidos por seus parentes.

STF muda “entendimento” para absolver Paulinho da Força

Denunciado pela PGR por atuar na liberação de empréstimos de mais de 500 milhões junto ao BNDES, com a obtenção, por óbvio, de seu “Pixuleco” pela intermediação, o ex-deputado e sindicalista havia sido condenado pelo próprio Supremo, em 2020, a dez anos de prisão pelos crimes de lavagem de dinheiro e associação criminosa. Na época, a 1ª Turma da corte havia entendido que os extratos de movimentações financeiras, assim como os demais documentos apreendidos pela polícia e os depoimentos de testemunhas eram provas robustas o bastante para justificar a condenação.

Anos depois, sem a apresentação de fatos novos, e no âmbito de recurso destinado apenas ao esclarecimento de tópicos confusos, o tribunal simplesmente “mudou de ideia”, e, nos termos do voto de Moraes, sustentou que “o exame das provas não aponta, de maneira indubitável, a participação do embargante (Paulinho da Força) nas condutas criminosas”. Chega a ser exaustivo repetir, a cada semana, que somos o país da insegurança jurídica, da impunidade e do estímulo à corrupção. Mas somos mesmo!

Gilmar e o traficante

“Não é válido decretar prisão preventiva com base apenas no crime de tráfico, sem que se aponte a vinculação do réu com organização criminosa ou qualquer outro elemento que ameace efetivamente a ordem pública.” A partir desse entendimento, o ministro Gilmar Mendes revogou a prisão preventiva de réu preso com 188 kg de cocaína, e condenado a cinco anos de prisão por tráfico de entorpecentes.

Ora, se a posse de quase duas centenas de quilos de narcótico não justifica o encarceramento de traficante por risco à ordem pública, não sei mais o que possa fundamentar a prisão de um indivíduo entre nós. Ou melhor, até sei: a manifestação de críticas a autoridades, às urnas eletrônicas, e ao regime instaurado, como foi o caso dos milhares de “réus” presos por ocasião do 08.01. Em nosso atual ambiente kafkiano, o universo togado não apresenta qualquer preocupação em apurar a verdade real, e, muito menos, em punir a prática de delitos definidos por lei enquanto tais; importante mesmo é averiguar as opiniões dos indivíduos sobre as instituições, e intimidar aqueles que ousem destoar do coro oficial.

Gilmar 2: “STF não admite intimidações

Em mais uma de suas manifestações histriônicas durante julgamento na corte, o togado destilou toda sua bile ao criticar a PEC, votada na véspera pelo Senado, sobre a imposição de restrições à torrente de decisões monocráticas que têm suspendido amiúde a vigência de leis. Do alto de sua habitual arrogância, elogiou seu colega Moraes pela condução do Inquérito das Fake News, por ele designado, em novilíngua, como mecanismo de “contenção de arbítrios”, e afirmou, em tom irônico, que “agora se descobriu que a grande ameaça à democracia é o Supremo Tribunal Federal”. E concluiu mais uma de suas falas iracundas: “esta casa não é composta por covardes. Esta Casa não é composta por medrosos.” Discurso alinhado ao de seu colega Barroso, ora presidente do tribunal, segundo o qual: “O STF é alvo de propostas de mudanças legislativas que, na visão da corte, não são necessárias e não contribuem para a institucionalidade do país.”

Agora é oficial: em nossa mixórdia nacional, quem pauta as prioridades do Legislativo é o Supremo. Inebriados pelo poder desmedido, nossos togados magnos só esquecem que não se permanece no poder sem um laivo de legitimidade sequer. E quem não suporta mais intimidações é o cidadão brasileiro, exausto de ser calado, ameaçado com prisões irregulares, e achincalhado diariamente pelo luxo da Nomenklatura estatal e pelo beneplácito togado a toda espécie de criminosos!

Fux x Tarcísio

Nos autos de ação movida pelo PT, o ministro Luís Fux determinou que o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e a Alesp justifiquem a promulgação de lei estadual que concedeu anistia às multas aplicadas durante a pandemia de Covid-19. Como fundamento à sua medida, a sigla presidencial sustentou que a norma questionada violaria “o direito fundamental à saúde e a higidez das receitas públicas.” Ainda durante a tramitação do projeto de lei, o governo paulista havia alegado que “além de gerar um alto custo de processamento de milhares de débitos (a maioria de pequeno valor), a manutenção da cobrança das multas, quando já superamos a fase mais crítica da doença, também não contribui para o desenvolvimento social e econômico do estado.

O caso não envolve qualquer afronta a dispositivo constitucional que mereça apreciação pelo Supremo. De fato, logo em um primeiro relance, em que consistiria a “violação ao direito à saúde”, se a pandemia já foi, há muito, declarada oficialmente encerrada, e se a infecção por Covid se tornou mais uma dentre tantas? Em que residiria o comprometimento à “higidez das contas públicas”, se multas são mais um encargo financeiro para as pessoas, físicas e jurídicas, e um desestímulo aos negócios? Violação direta à Constituição foi o próprio oferecimento dessa ação aventureira, tentativa clara de interferência na autonomia de um Estado da federação, e, assim, de desrespeito ao próprio pacto federativo.

Mais uma medida politiqueira, financiada por fundos públicos, e que implicará em desperdício ainda maior de tempo e dinheiro junto à cúpula judiciária.

STF mantém pensão vitalícia a ex-governadores

Em 2020, em exame de ação da PGR que pleiteava a derrubada do benefício em nove Estados, a corte havia entendido que a pensão seria uma benesse inconstitucional. Contudo, embora tenham derrubado diversas leis estaduais nesse sentido, nossos supremos houveram por bem sacramentar que “daqui para a frente os governadores não terão mais direito ao pagamento, mas aqueles que já ganham a pensão devem continuar recebendo o subsídio.” Aplicação da tese “enferrujada” sobre direitos adquiridos no âmbito do direito público, o que não passa de falácia, pois, em casos com este, a parte incumbida de custear a receita pública (contribuinte) não é consultada sobre a realização da despesa. Seguimos no atraso.

Justiça paranaense arquiva denúncia da Lava-Jato contra Beto Richa

Por falar em ex-governadores, o juiz Roger Vinícius, da 3ª Vara de Fazenda Pública de Curitiba, arquivou ação de improbidade administrativa contra o ex-governador Beto Richa, e contra outras doze pessoas e empresas. Nos anos lavajatistas, Richa, alvo da “Operação Piloto”, havia sido tornado réu por suposto esquema de corrupção e lavagem de dinheiro na duplicação da rodovia estadual PR-323. O processo chegou ao Supremo, teve sua remessa à primeira instância determinada por Gilmar Mendes, e foi então que o magistrado curitibano julgou inepta a petição inicial do caso, por suposta ausência de provas robustas contra o político. Mais uma vez, a corrupção venceu. Assim como o descrédito no poder não-eleito.

TRF-1 readmite candidato pardo em concurso

A 6ª turma do tribunal manteve decisão que havia assegurado vaga a candidato autodeclarado pardo em concurso público da ABIN. O candidato, excluído do concurso por ato da banca, havia proposto ação para ser readmitido no certame. Em primeira instância, obteve sentença favorável, e, no recurso interposto pela União, o relator desembargador Jamil Rosa de Jesus Oliveira entendeu que “embora não caiba ao Poder Judiciário substituir os critérios da banca examinadora, salta aos olhos a profunda discrepância entre a conclusão da banca e a fisionomia do candidato, pessoa de tez parda escura.”

Como observamos, há entre nós verdadeiros “tribunais raciais”, desde os órgãos da administração pública até o Judiciário, todos encarregados de examinar a fisionomia do indivíduo e sua tez, com direito a descrições precisas sobre o teor de melanina na pele. Situação grotesca, que talvez causasse inveja a experts em “arianismo” nos tempos do Führer.

CNJ investiga magistrado por alusão à fala de Lula sobre furto de celulares

A pedido da AGU – capitaneada pelo inesquecível “Bessias” -, o Conselho decidiu, por unanimidade, abrir processo administrativo disciplinar (PAD) contra o magistrado José Gilberto Alves Braga Júnior, do TJ/SP. A pseudo-irregualaridade consistiu em trecho de decisão, durante audiência de custódia de suspeito de furto de celular, em que o juiz teceu considerações sobre a banalização de tal prática delitiva entre nós, “até porque relativizada (essa conduta) por quem exerce o cargo de presidente da República”.

Nem o próprio corregedor de justiça, ministro Luís Felipe Salomão, foi capaz de apontar qualquer “ofensa objetiva” ao atual ocupante do Planalto. Desprovido de argumentos, chegou ao cúmulo de afirmar que “é um tanto didático esse caso”, e de lançar a seguinte pergunta, bem retórica aliás: “o que tem a ver o presidente da República com a audiência de custódia do furto de um celular?

Ora, Dr. Salomão, essa indagação não é da sua alçada, nem da de ninguém, pois seres humanos deveriam ser livres para manifestar suas ideias e posições, e, no exercício da magistratura, autônomos o suficiente para fundamentarem suas decisões como bem entendessem. Contudo, na terra onde a liberdade de expressão se tornou pura ficção, e onde o governante e todos os poderosos do seu entorno (incluindo togados) foram alçados à condição de “mitos inatacáveis”, é bem possível que o juiz paulista venha a sofrer sanções. Ou seriam retaliações?

OAB prevê multa por fake news em eleição interna

Em recente provimento contendo regras eleitorais, a Ordem passou a contemplar a possibilidade de imposição de multa de até 100 anuidades a candidato que vier a divulgar fake news. Segundo a norma, serão considerados falsos os conteúdos “produzidos, patrocinados, divulgados, ou não, por candidatos(as) ou por interpostas pessoas, com o objetivo de disseminar mentiras ou meias verdades sobre pessoas e acontecimentos, que se constitua em afirmação caluniosa, difamatória ou injuriosa capaz de causar dano à honra de candidatos(as), promova discurso de ódio, incite a violência ou veicule fatos sabidamente inverídicos para causar atentado à igualdade de condições entre candidatos(as) no pleito, de forma a enganar de maneira efetiva e influenciar a opinião pública e as eleições, que tenha potencial de modificar ou desvirtuar a verdade com relação ao processo eleitoral, bem como para causar embaraço ou desestímulo ao exercício do voto e deslegitimação do processo eleitoral.”

Um oceano de conceitos indefinidos e de pura subjetividade, capazes de darem ensejo à punição de qualquer um, por qualquer tipo de conduta, ao sabor das conveniências dos que decidem. Pelo visto, o Judiciário “fez escola”, e a insegurança jurídica se espraiou pela corporação que, na forma da Constituição, deveria ser essencial à democracia. Mas que, na prática, com exceção de poucos arroubos de lucidez, vem se mostrando um “puxadinho” dos togados, imitando seus vícios, e calando sobre arbítrios constantes contra profissionais inscritos na Ordem, e pagantes de suas anuidades caras. O autoritarismo local segue a lei da gravidade, sendo disseminado das camadas de cima em direção às intermediárias e às inferiores, até envenenar todo um tecido social.

*Kátia Magalhães é advogada, liberal e apaixonada por arte e cultura.

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