A gaúcha Glenda Varotto é direta ao afirmar que desde criança tem vontade de ser protagonista e tomar as rédeas da própria vida. Por sua personalidade, ela se considera naturalmente feminista. Glenda, ou melhor, Espectro Cinza, como prefere ser chamada, vem ganhando cada vez mais popularidade ao discursar em favor do “Conciliacionismo de Gênero” entre homens e mulheres.
Seja participando de podcasts ou transmitindo lives, ela faz questão de se trajar de modo inconfundível para seu público, com maquiagem e cabelo que lembram personagens de Blade Runner. Numa época em que ser feminista se tornou sinônimo de fanatismo, ela chama atenção pela defesa da racionalidade, do iluminismo e dos valores liberais.
Boletim: A primeira escritora reconhecidamente feminista, Mary Wollstonecraft, também foi uma proeminente pensadora liberal. Em termos gerais, qual a ligação entre feminismo e liberalismo?
Tanto esquerdistas, quanto pessoas mais à direita ou liberais, tendem a enxergar o feminismo como algo originado na esquerda. Mas na verdade, é um movimento de origem liberal, e possui valores do liberalismo clássico: a autonomia do indivíduo, a busca pelo esclarecimento, emancipação civil, sufrágio universal, e uma das coisas mais importantes, a responsabilização a partir da tomada de decisões.
Mary Wollstonecraft escreveu muito a respeito disso, sobre a mulher ser tratada como uma cidadã de segunda classe, como uma criança, um sujeito intelectualmente menor. E um dos pontos mais evidentes (no feminismo) é o reconhecimento da mulher enquanto indivíduo autônomo, que deve ser emancipada politicamente, civilmente e que é merecedora de tantos direitos quanto o homem. E também a defesa do estudo. Mary Wollstonecraft era uma cristã puritana e defendia que homens e mulheres deveriam desenvolver virtudes morais.
Ela acreditava que se uma mulher não aprendesse a partir da formação intelectual, ela seria apenas uma reprodutora de costumes, sem saber o porque deveria exercer essas atividades, como se fosse um papagaio. A Mary tinha essa percepção de que a mulher deveria ser sua própria intelectual.
Boletim: Hoje em dia, pelo menos no Ocidente, as principais demandas do feminismo na sua origem foram atingidas. Além de terem igualdade perante a lei, as mulheres participam ativamente da política e do mercado de trabalho. Por que você entende que essa pauta continua relevante?
Eu penso ser muito diferente o reconhecimento teórico de certos direitos e a sua aplicação prática na vida das pessoas. Teoricamente todos somos iguais perante a lei, mas na prática não é assim. Vamos olhar exemplos do Brasil profundo, onde inúmeras crianças, principalmente meninas jovens, são vendidas pelos pais em troca de itens básicos de alimentação ou têm a virgindade leiloada para homens que vêm de outros países. Além disso, nos acostumamos com determinados preconceitos contra mulheres simplesmente “porque a vida é assim”.
Vou dar um exemplo pessoal. Recentemente eu me aproximei do MBL (Movimento Brasil Livre), eu escrevo para a revista Valete, produzo um podcast utilizando infraestrutura deles… Naturalmente, existem pessoas que não gostam de mim. Não é na alta cúpula ou entre quem está efetivamente produzindo algo. São pessoas que me acusam de inúmeras coisas tipicamente sexistas e misóginas. Não podemos negar que isso é mais comum na direita. São acusações de que eu sou uma prostituta, de que eu sou uma vagabunda, de que meu sócio é meu mentor intelectual (e que também escreve por mim), como se eu não fosse merecedora de crédito. Eu não faço estardalhaço por causa disso, mas ao mesmo tempo é irônico.
Eu passei uns 15 anos falando sobre machismo, me tornei muito audaciosa e casca grossa, e então chegou o momento em que isso aconteceu comigo. Quando eu me deparo com esse tipo de situação, eu fico surpresa. Ver aquilo que eu sempre denominei machismo, misoginia, intolerância, inclusive vindo de mulheres. Algumas mulheres também entram em contato comigo porque veem que existe necessidade de discutir determinados assuntos, de uma maneira mais racional e conciliadora. Então veja que a conquista de espaços vai muito além da conquista de direitos civis, tem a ver com cultura, com ambiente de trabalho, com religião.
Boletim: Autores como Camile Paglia apontam que o movimento feminista sofreu uma reviravolta no final da década de 60, e passou a adotar uma postura revolucionária de aversão aos homens. Faz sentido dizer que o feminismo foi “sequestrado” por grupos anticapitalistas que desprezam os homens?
Indiscutivelmente sim. Na minha percepção, parece um fenômeno típico de movimentos com muita força política. Isso aconteceu com cristãos, comunistas, conservadores, liberais, anarcocapitalistas, etc. Essa (radicalização) é um comportamento de manada muito típico. Uma postura extremamente tribalista motivada pelo ressentimento, e até mesmo por uma certa vontade de identificar o inimigo com mais facilidade.
Nesse caso, o inimigo tem inúmeras características: homem, branco, hétero, cristão, tradicional e socialmente bem ajustado. Isso facilita certas políticas e discursos. É uma simplificação vulgar a respeito de fenômenos muito complexos, e até mesmo uma autocondescendência sobre a responsabilidade da mulher.
Eu penso que o sectarismo anti-homem se fincou no movimento feminista e se tornou um status quo. As feministas adotaram esse discurso, ele se espalhou como um rastro de pólvora, e todos se acostumaram com ele. Outros seres humanos são um termômetro sobre o que é aceitável: “Ué, se todo mundo está tratando isso como aceitável, talvez seja.”
Boletim: Como é tua relação com essas feministas?
Basicamente não existe relação. Ao longo dos anos, eu venho discutindo e estudando sobre feminismo. Desde criança, eu sou uma pessoa competitiva, com vontade de ser protagonista e tomar as rédeas da minha própria vida. Eu diria que eu era uma feminista natural, por questão de personalidade, até eu descobrir a teoria feminista de fato. Eu fui sofisticando meus posicionamentos ao longo do trajeto, e percebi que eu não me reconhecia mais como feminista marxista. Isso naturalmente me distanciou desse discurso sectário. Eu simplesmente parei de me relacionar com esse nível de fanatismo. Não existe o mínimo em comum para uma comunicação produtiva.
Além disso, eu me tornei marginalizada por determinadas feministas. Acho irônico, porque eu consigo entender o que elas sentem de mim, é o mesmo que eu sentia da Camile Paglia alguns anos atrás, eu sentia raiva dela, eu achava que ela era uma puxa-saco de homem. Eu sei o que essas feministas pensam de mim, porque eu já fui como elas no passado. E por isso não existe relação, eu sou ostracizada. É algo que a esquerda fez muito comigo, fingir que eu não existo.
Boletim: Considerando que muitas feministas afirmam que a postura liberal é incapaz de solucionar certos problemas estruturais, qual a importância da autonomia individual para o empoderamento das mulheres?
As feministas marxistas entendem que o sexismo, e outros preconceitos contra minorias, são originados pelo capitalismo e que estão intrinsecamente arraigados no patriarcado. Dá para fazer um malabarismo a respeito do monopólio de recursos que os homens exerceram por milênios. Isso inclusive acontece em espécies de macacos, onde os machos costumam controlar os recursos como uma maneira de chantagear as fêmeas e ter acesso a seu capital reprodutivo.
Porém, o que percebemos é que sociedades liberais e democráticas, que ascenderam economicamente e portanto alcançaram maior riqueza e estabilidade, proporcionam também maior segurança existencial. Isso gera maior abertura para a modificação da cultura e de valores. Tem um livro muito interessante chamado “A Evolução Cultural”, que fala como a segurança existencial de uma sociedade pacífica, economicamente estruturada, com acesso à educação, torna essa sociedade mais aberta à mudanças. Uma sociedade em guerra, crise econômica ou instabilidade geopolítica, faz com que pessoas busquem mais segurança, girem em torno de líderes autocratas e busquem um status quo muito convencional.
Uma das formas que as mulheres têm de exercerem mais liberdade, é buscando uma sociedade mais pacífica, com mais desenvolvimento e estabilidade, viver em um país rico e produtivo. Isso faz com que as pessoas se abram para reflexões intelectuais, mudanças de paradigmas e valores. E o liberalismo está intrinsecamente associado a isso. Foram justamente sociedades liberais, em efervescência econômica, que passaram a questionar o status quo. Eu penso ser até uma inocência, ou desonestidade intelectual, não reconhecer que foram essas sociedades que desenvolveram teorias acerca da condição do ser humano, sobre o que ele deve e o que ele merece enquanto cidadão.
Boletim: Você é criadora e proponente do chamado Conciliacionismo de Gênero. Como você explica esse conceito?
O feminismo se posiciona como um movimento ativista para resolução de conflitos de mulheres para mulheres. Porém, analisando evidências científicas, e analisando como o monopólio do poder na sociedade é exercido contra as mulheres, e também contra os homens, é impossível negar outros fatores. Recentemente, o canal Econometria Fácil trouxe a informação muito interessante de que sociedades onde houve muito enriquecimento econômico e também reconhecimento dos direitos civis das mulheres, mas que em contrapartida, não houve mudança de paradigma dos valores da sociedade, há uma queda brusca de fertilidade.
Quando existe uma mudança de paradigma e de cultura, a fertilidade sobe. Então, se há enriquecimento, educação feminina, junto com a mudança de valores que os homens também absorvem, há uma subida de fertilidade, e isso acontece porque homens e mulheres estão dividindo mutuamente responsabilidades e cuidado parental. Quando as mulheres têm muito acesso à educação em um país rico, mas os homens não dividem tarefas e responsabilidades, elas percebem isso como desvantajoso, então elas se recusam a casar e ter filhos. Foi o que aconteceu no Japão, um país muito rico e produtivo, mas curiosamente muito sexista, e com uma taxa de natalidade baixíssima.
Eu penso que o Conciliacionismo de Gênero reconhece vantagens e desvantagens no status quo do homem e da mulher, que são interdependentes, e para resolvermos problemas que afetam ambos, é indissociável que haja um foco na resolução de conflitos de homens e de mulheres. Não adianta focarmos apenas em problemas femininos, sem focarmos em problemas masculinos. Problemas masculinos vão inevitavelmente afetar as mulheres.
Um exemplo é o caso dos Incels (sigla em inglês para celibatários involuntários), homens que ficam isolados em casa, sem perspectiva de futuro, não trabalham, nem estudam, muitas vezes possuidores de traços autistas. Esses homens acabam desenvolvendo um certo niilismo existencial e ódio direcionado às mulheres. Eles são vilipendiados, humilhados e vistos como pessoas nojentas e fracassadas, e por isso acabam usando as mulheres como bode expiatório. Alguns deles se tornam violentos e endossam comportamentos violentos contra mulheres e também contra homens. Então, homem doente, significa sociedade doente, significa mulheres sofrendo também.
Boletim: Que abordagem devemos adotar em relação a esses homens?
Eu penso que deveríamos ter muito mais generosidade em relação a esses homens que fracassaram. Veja bem, os homens que venceram ou que são razoavelmente bem ajustados na sociedade, têm um profundo desprezo por esses homens que fracassaram socialmente. Uma das formas que eles poderiam fazer parte da solução, seria mostrar mais generosidade e acolher esses homens, inclusive na convivência. Um comportamento tipicamente masculino é dos homens mais fortes e melhor posicionados na hierarquia masculina, humilharem e perseguirem os homens mais fracos e que estão abaixo da hierarquia. Eu penso que isso acaba levando estes homens para os extremos e para o isolamento.
Numa perspectiva do feminismo conciliacionista, o ideal é que eles se sintam à vontade para discordar de mim e trazer novos posicionamentos. Sou extremamente liberal nesse aspecto e cultivo essa cultura racionalista de que vamos encontrar os melhores posicionamentos a partir do pensamento crítico e reflexivo. Aliás, uma estratégia feminista minha de “conquista de territórios” é abrir certas concessões e se aproximar de grupos de direita mais conservadores, para que essas pessoas percebam que nós temos muito mais em comum do que eles pensavam.
De que o feminismo não é necessariamente nocivo, que existem modos conciliadores para resolvermos problemas de homens e de mulheres, de forma intelectualmente honesta, cientificamente embasada e que isso não vai decair para uma sociedade decadente, moralmente degradada, niilista, ou completamente perdida. Só que isso demanda ceder um pouco de espaço e se colocar em alguns ambientes que pessoas de esquerda não aceitariam, seria uma espécie de profanidade. Faz parte do jogo sujar um pouco as mãos. Alguém tem que fazer esse trabalho.
Boletim: Por fim, o que te levou a se aproximar do Movimento Brasil Livre (MBL)? Você pretende se envolver diretamente na política nos próximos anos?
Eu tenho uma relação passional com o MBL, é muito engraçado. Quando eu soube da existência do MBL há 10 anos, eu não tive muito interesse. Até porque quando eles começaram eu era mais de esquerda. Eu tinha um certo nojo moral, uma soberba pelas pessoas que eles eram, as pessoas que eu enxergava à distância. Nos últimos anos, eu me tornei uma pessoa mais liberal e intelectualmente quimérica, eu não sou refém de absolutamente nada, nem de partido, nem de mentor intelectual, nem de filósofo, nada. Eu comecei fazendo reacts do MBL, no início eu tinha raiva, aguentava assistir uns 2 minutos e tinha vontade de levantar, sair e quebrar o computador.
À medida que eu assistia, percebi que eles não eram as pessoas que eu imaginava, muito pelo contrário, eles são muito inteligentes, bem intencionados, preparados e têm um projeto interessante. E daí, simplesmente um dia, um mulçulmano do MBL entrou em contato comigo e disse que eu deveria escrever na Valete. “O que? Um muçulmano da direita conservadora brasileira resolveu chamar uma feminista aceleracionista para escrever na revista deles, não é possível, esse pessoal está doidinho”.
Naquele momento, eu prestei atenção numa característica que a esquerda perdeu ao se tornar hegemônica: o prazer em ser experimental, fluído, pantanoso como um artista. Eles estão ali para conviver com os doidinhos, os desajustados, os ostracizados, basicamente eu sou assim. Por causa disso, eu aumentei minha estima por eles. O conteúdo deles também se tornou cada vez mais interessante para mim por possuir mais base científica. Eu tive algumas idas e vindas, mas foi ok. Foi tudo muito passional, e se é passional, é verdadeiro.
Agora, sobre minhas pretensões políticas. Muita gente acha que eu quero tirar vantagens do MBL, para me candidatar e depois ficar sentada no dinheiro. Mas eu não tenho a menor pretensão de me candidatar. Primeiramente, o sistema de incentivo da política brasileira lhe coloca em situações que é muito difícil não abrir mão de valores imprescindíveis para você. Chegará o momento em que você vai estar coberto de merda até a cabeça. A política no geral é degradadora de caráter. Além disso, eu tenho outros projetos para fazer, focados em arte. A arte tem um fator de influência, que é mais poderoso do que a política, é geracional. E se eu for me candidatar algum dia, vai ser daqui uns 15, 20 anos: “Fiz tudo que deveria fazer, agora vou me candidatar”.