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Entrevista: As bases cristãs do libertarianismo com Paulo Ghedini 

Paulo Ghedini fala ao Boletim sobre como o cristianismo contribui e influencia a defesa da liberdade
Paulo Ghedini fundou o Instituto Libertário Cristão para defender a liberdade sob a luz do cristianismo
Foto: Arquivo Pessoal

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Após fazer carreira no mercado financeiro, Paulo Ghedini fundou em 2024 o Instituto Libertário Cristão, primeiro think-thank brasileiro voltado para a defesa da liberdade a partir dos ensinamentos da Bíblia. Inspirado em organizações americanas como o Acton Institute, Paulo quer demonstrar que a violência estatal nada tem a ver com a palavra de Jesus Cristo. 

Pelo contrário, os artigos publicados no site do Instituto expõem diversas passagens, sejam no antigo ou no novo testamento, que chancelam a desobediência civil e a defesa dos direitos individuais. Afinal, não é justificável que burocratas e políticos tenham mais poder do que Deus. 

Boletim: Como surgiu a iniciativa de fundar o Instituto Libertário Cristão?

A filosofia política e o libertarianismo chegaram na minha vida em 2012, quando eu fazia mestrado nos Estados Unidos (EUA) e o Ron Paul era candidato do Partido Libertário à presidência. Ron Paul, um candidato libertário e católico, me chamou muita atenção. Meus amigos na época falavam que eu não podia ser libertário e cristão ao mesmo tempo. Então eu pesquisei e percebi que haviam muitos cristãos libertários nos EUA, e institutos que tratavam só disso. Naquela época, eu comecei a acompanhar o site do Instituto Mises Brasil e li quase todos os artigos. Vim para o Brasil, nas conferências do Mises, conheci o Hélio Beltrão. Eu comecei a me identificar como libertário, faz 14 anos. 

Eu sou batizado na igreja católica e frequento a missa todo domingo, mas eu iniciei meu estudo da Bíblia no que se refere à filosofia política a partir de 2011/2012. Muito por causa dessa confrontação, de amigos que achavam a Bíblia incompatível com minhas crenças. Eu sentia que não era, mas não tinha muitos argumentos. Então procurei materiais do exterior, porque no Brasil não tem, e decidi: “Um dia vou fazer algo do tipo no Brasil, não é possível que existam tantos cristãos aqui, e na América Latina em geral, e que eles não tenham acesso do porque a filosofia libertária é a mais compatível com o cristianismo.”

Por vários motivos demorei para fazer isso. Eu tenho três filhos, uma vida profissional atribulada. Estudar filosofia, história, política e economia é um hobby. Eu não tinha muito tempo para criar um Instituto. Em 2019, criei o logo, fiz o copywrite, pedi permissão a todos os autores e institutos de fora para traduzir o material deles. Gastei muita grana com tradução, na época não existia ChatGPT. Veio a pandemia e não deu para lançar. Tudo estava pronto: Estatuto, Conselho Administrativo, eu quis fazer tudo direito desde o começo. Não é algo para crescer rápido, para ganhar dinheiro, é algo com um propósito etéreo, de longo prazo. Quando a pandemia acabou, eu falei: “Vou retomar aquele projeto de 2019”. Quase foi lançado em 2023, e saiu do papel mesmo em julho de 2024.

Boletim: Quais são os principais paralelos que você enxerga entre o cristianismo e o libertarianismo? 

Primeiro, o alicerce do Princípio da Não Agressão (PNA) são as leis naturais: Respeito à vida, propriedade e liberdade. Algo inclusive defendido por São Tomás de Aquino na Suma Teológica. E também a Regra de Ouro: “Não fazer ao outro o que você não faria para si mesmo”, que Jesus falou em Mateus 7, Lucas 6. Isso implica no Princípio da Não Agressão. Outra premissa bíblica dentro do PNA é de que somos todos iguais perante Deus, está em Romanos 2, em Gálatas, em uma série de passagens. Uma novidade para a época. 

Sem esses alicerces cristãos fica até difícil defender o PNA. Os ateus libertários não vão concordar comigo, mas essa ética de respeito ao outro vem da Regra de Ouro, vem do fato de sermos iguais perante Deus. Porque se não fossemos iguais perante Deus, a escravidão seria correta. Alguns têm mais direitos, então eles podem matar, roubar, estuprar… Se alguém é escolhido por Deus, então ele pode fazer o que quiser, pois é melhor que os outros. O cristianismo mudou isso. 

Segundo ponto, o livre-arbítrio. Isso existe porque Deus nos fez a sua imagem e semelhança. Ele nos deu a dignidade de escolher entre o bem e o mal, inclusive se auto prejudicar. O livre-arbítrio é um paralelo óbvio com a liberdade individual. O próprio São Tomás de Aquino fala que a crença não deve ser forçada. Várias passagens da Bíblia falam sobre isso, a que eu mais gosto é Gálatas 5.1: “É para que sejamos livres que Cristo nos libertou.” 

E temos a propriedade privada. A Bíblia inteira tem trechos sobre a legalidade da propriedade privada. Jesus e os Apóstolos não iriam usar parábolas com alusão à trocas voluntárias, doação, caridade, acúmulo de riqueza, se essas coisas fossem demoníacas. Do lado mais óbvio, o mandamento “Não Roubarás”. Se não existisse propriedade privada, se nada fosse de ninguém, então não precisaria falar contra o roubo. Além disso, a caridade, que por definição é algo voluntário. Não existe o conceito de caridade forçada, isso é um oxímoro. 

O quarto ponto seria a visão do estado. A Bíblia é coerente, ela não pode ter contradições, esse é um axioma cristão. Pois se existirem contradições, então aquilo não foi escrito por Deus. E a Bíblia tem várias passagens mostrando que o Reino de Deus não é deste mundo e que a governança monopolística coercitiva é mais compatível com o demônio do que com Deus. No antigo testamento, temos a Torre de Babel, que fala sobre a origem do estado, um exemplo de afronta a Deus:  o homem querendo ser igual a Deus.

Também em Samuel 8, quando o povo pediu por um rei, e o profeta avisou que esse rei iria matar, estuprar e escravizar. Até ali, as tribos eram anárquicas e quando tinham um problema, Deus enviava um profeta ou juíz para resolver a situação. Em Mateus 4, o maligno tenta Jesus com os reinos deste mundo. Você acha que se os governos fossem algo abençoado por Deus, o diabo teria poder sobre eles? Ele permite que essas coisas existam, assim como permite que o mal exista. 

Boletim: Voltando ao conceito cristão de livre-arbítrio, o quão central você percebe que isso é na defesa da liberdade individual?

É importantíssimo. Eu diria que desses quatro pontos que eu citei, o mais indiscutível é o livre-arbítrio. Em algumas questões, os cristãos por mais que acreditem no livre-mercado, eles têm compreensivelmente o instinto paternal de querer ajudar os outros, têm compaixão e empatia. Mas eles acabam pecando, literalmente, pois acham que os fins justificam os meios. Na cabeça deles, pode ser positivo desrespeitar o livre arbítrio de um terceiro para o bem dele. Desrespeitando assim o que Paulo falou em Romanos 3, de que não existe a hipótese de Deus gostar de alguém que faça o mal para obter um bem. Ou seja, os fins importam, mas os meios também importam. Se a pessoa discorda disso, ela abre uma caixa de Pandora para controlar os outros e usar poder coercitivo, pois sente-se moralmente legitimada.

Apesar de Santo Agostinho ter falado que forçar a virtude é rebaixar o ser humano ao nível de um animal, muitos cristãos não escutam Santo Agostinho. Apesar de São Tomás de Aquino dizer que não existem virtudes forçadas, há cristãos que se acham no direito de fazer isso. Eles não respeitam o livre-arbítrio das pessoas escolherem o mal, apesar de nem Deus ter tirado isso delas. A razão pela qual nascemos e morremos é justamente exercer o livre arbítrio para escolher entre o bem e o mal.

Como um cristão pode achar normal que um burocrata nos tire o direito de exercer aquilo pelo qual nascemos? Ninguém vira santo e vai pro céu por obedecer a uma regra. Se fosse fácil assim, Deus não teria gastado tempo morrendo na cruz, ele teria convencido Herodes e Pilatos a criar uma regra. O objetivo não é ficar bem aqui, mas sim ir para o céu. E você só vai para o céu se fizer isso de livre e espontânea vontade. Olha a beleza do que Deus propôs, é totalmente compatível com o libertarianismo.

Boletim: Partindo dessa questão, diversas denominações cristãs buscam acumular poder político e influenciar o processo legislativo com base em preceitos religiosos. No Brasil, existe inclusive a chamada “Bancada Evangélica” que reúne cerca de 228 parlamentares dos mais diversos partidos. O quão preocupante é essa mistura entre cristianismo e estado?

Depende do que estamos falando. Se um político usar o poder estatal para garantir nossos direitos naturais, nosso direito à vida, propriedade, e liberdade individual, inclusive à liberdade religiosa, show. O jogo está sendo jogado. Vou dar um exemplo: o direito à educação domiciliar. Eu acho super legal que exista gente na política falando “Oh, desculpa, os pais têm direito de dizer para a criança que ideologia de gênero não tem sentido”. Até aí tudo bem, não é que eles estão querendo misturar com o estado, eles estão usando o poder vigente temporal para preservar as leis naturais que Deus nos deu. 

O curioso, é que essas mesmas pessoas ficam bravas com o estado grande e intervencionista nesse caso, mas não quando eles próprios usam o estado para impor fins aos outros e desrespeitar o livre-arbítrio e as leis naturais. Uma espécie de dois pesos e duas medidas. 

Boletim: Na América Latina, presenciamos a ascensão de movimentos dentro da igreja Católica fortemente ligados ao Marxismo, como é o caso da “Teologia da Libertação”. Além disso, o Papa, de origem argentina, fez diversos comentários associando os ensinamentos do Evangelho ao pensamento de esquerda e chegou a afirmar que “os comunistas pensam como os cristãos”. Isso faz algum sentido?

Não, não faz nenhum sentido. Entendo a origem dessa frase, e apenas lamento. O que é o comunismo? A limitação das leis naturais. Não é o amor, é a espada. É o aprisionamento, o assassinato. Não à toa, um dos primeiros a mencionar essa ideia de que “Jesus era socialista” foi Mikhail Gorbachev em 1992, justo um ateu como ele, que colaborou com um regime assassino, alguém que realmente não entende de cristianismo. E é lamentável que um Papa fale um negócio desses. 

Infelizmente a Teologia da Libertação é esse braço infiltrado dentro da Igreja. Alguns alegam que foi influência da KGB, na Península Ibérica, França, América Latina. E aqui no Brasil, ela tem seus representantes, como Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo amigo do Lula, Leonardo Boff… Esses caras misturaram alhos com bugalhos. É um absurdo comparar a caridade que Jesus propõe com dar poder a um burocrata de usar dinheiro dos outros e coagir indivíduos pacíficos para fazer o que ele acha que deve ser feito.

Jesus em nenhum momento fala de concentração de poder, intervencionismo, distribuição de riqueza. Pelo contrário, em uma passagem, em Lucas 12, Jesus rechaça a inveja de quem pede por uma redistribuição de herança. Ele fala que o homem não vive de matéria e o que importa é o Reino dos Céus.

Boletim: Falando de certos trechos da Bíblia, em Romanos 13:1-2, Paulo escreve: “Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores; pois não há autoridade que não venha de Deus”. Como essa passagem deve ser interpretada dentro de uma perspectiva libertária, que questiona a autoridade estatal?

Esse é o ponto que mais usam para atacar a compatibilidade do cristianismo com o libertarianismo. Temos vários artigos no site tratando sobre isso. Eu vou dar três argumentos: Paulo estava escrevendo para um povo perseguido, muitos cristãos estavam sendo mortos em Roma. Era um contexto de cuidado e prudência. Ele não queria que os cristãos fossem mortos sem motivo, na linha de “Temos coisas mais importantes para brigar do que sonegação de impostos”. Era uma mensagem de aviso, esse era o contexto, e a passagem precisa ser lida nesse contexto. Além disso, temos o contexto maior. A Bíblia não se contradiz, e existem todas aquelas passagens fazendo um antagonismo claro entre o Reino de Deus e o estado. Há duas hipóteses então: ou minha interpretação está errada, ou a Bíblia é coerente e precisamos entender aquilo dentro do contexto.

E o terceiro ponto é a tradução: A tradução original de Romanos 13:1-2 é “Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores, pois não há autoridade que não venha de Deus. E as autoridades que existem foram estabelecidas”, a tradução do verbo em grego “estabelecido” pode ser entendida tanto como algo vindo diretamente de Deus ou como algo que ele permitiu que existisse. Em resumo, uma tradução alternativa mostra que essas autoridades não vêm de Deus, elas foram permitidas, assim como foi o diabo. Permissão é bem diferente de chancela. É só pensar, como obedecer a toda autoridade se Jesus, Maria e José tiveram que fugir de Belém, desobedecendo a autoridade de Herodes? Eles teriam morrido se ficassem lá. Desobediência civil é o que não falta na Bíblia.

Boletim: Em Mateus 22:21, Jesus diz: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Isso implica uma aceitação da tributação estatal, ou pode ser interpretado de outras formas?

É engraçado, os autoritários usam essa passagem como um exemplo de endosso ao imposto, sendo que é exatamente o contrário. Basta olhar os exemplos de como impostos eram odiados na época. E justamente por serem odiados, os herodianos se juntaram aos fariseus para pregar uma cilada em Jesus e fazer ele morrer pela boca, literalmente. Essa pergunta aparece em várias passagens na Bíblia, e a essência dela é: Pagar imposto é legítimo? Se Jesus respondesse que sim, ele iria “queimar o filme” com os judeus, que eram muito contrários aos impostos. Ele iria ser chamado de traidor. Mas ele também não poderia responder que não, ou seria morto antes da hora.

Os herodianos eram leais ao Imperador, eram uma mistura de judeu com legalista romano. Eles estavam loucos para ouvir Jesus falar contra o pagamento de impostos, por isso se uniram aos Fariseus, que eram seus inimigos. E Jesus formulou uma resposta brilhante. Em “Dai a César o que é de César”, ele não diz o que é de César. Ele conseguiu sair da cilada sem falar o que é de César. Ele não falou que o imposto é devido ou moral. Quem disse que o fruto do trabalho de alguém é de César? Ele não falou. Jesus conseguiu escapar dessa situação de uma maneira que só Deus conseguiria. Escapou de uma morte prematura. 

Boletim: Para finalizar, em Mateus 19:23-25, Jesus diz a seus discípulos que “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no Reino de Deus”. Essa afirmação não seria anticapitalista na sua essência?

Não tem nada a ver. Essa e outras passagens na Bíblia dizem que o dinheiro não pode ser amado, não pode ser o objetivo da sua vida, que você não pode endeusar o dinheiro. O jovem rico a quem ele faz referência nessa passagem tinha esse problema, Jesus sabia e por isso propôs o teste. Se fosse uma regra geral vender tudo e seguir Jesus, quando ele encontrou Zaqueu (cobrador de impostos que fugiu para cima da árvore), ele não teria aceitado apenas metade do que Zaqueu se ofereceu a doar, teria pedido para ele doar tudo. Mas Jesus sabia que Zaqueu não endeusava o dinheiro.

Então a leitura correta dessa passagem, feita em várias homilias, é: Primeiro, o dinheiro não deve ser endeusado. Segundo, o dinheiro é um catalisador de mais tentações. É óbvio, as coisas do mundo são compradas com dinheiro, os pecados são mais fáceis com dinheiro, então isso torna mais difícil que o rico seja virtuoso, mas não impossível. O “buraco da agulha” não era uma agulha de costura, era a porta pequena por onde passavam os animais. Dá para atravessar agachado. É mais difícil? Sim, mas dá para atravessar, só requer um esforço maior, da mesma forma que mais dinheiro requer uma virtude maior para não se cair em tentação. Essa é a mensagem. 

 

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