Por Mariano*
Os veículos de imprensa recentemente sofreram um duro golpe de onde menos esperavam, quando o assunto era a proteção da liberdade de imprensa: o Supremo Tribunal Federal. Talvez, por ainda acreditarem que a Suprema Corte os auxiliaria em seus pleitos, como foi o caso direito ao esquecimento, pouco foi divulgado sobre a importância do julgamento do Tema 995 de repercussão geral (RE 1.075.412/PE).
Houve equívoco nessa avaliação. Inúmeros fatores podem ter provocado isso. A verdade, porém, é que a imprensa se esqueceu de um movimento novo e curioso que tem pairado no clima da Suprema Corte: a busca incansável por estabelecer a verdade e responsabilizar os seus culpados.
O objetivo desse artigo é realizar algo similar ao jogo dos sete erros para você, cara leitora ou caro leitor. Os erros a seguir apontados são todos baseados numa análise de critérios jurídicos para demonstrar que, com todo respeito a quem pense diferente, o correto seria ficar com aquele que tanto tempo foi taxado como a autoridade judiciária de uma só voz na defesa de ideias: o Ministro aposentado Marco Aurélio. Vamos a eles.
O primeiro erro foi o STF resolver uma questão constitucional relevante – qual seja, a possibilidade ou não de responsabilizar civilmente veículo de comunicação ante publicação de entrevista de terceiro – a partir do julgamento de uma causa em que se discutia a imputação de conduta a determinado cidadão no regime de ditadura militar.
O regime de exceção político-militar instalado no Brasil enseja inevitavelmente paixões, trazendo mais o coração e o fígado para o processo de tomada de decisão. Infelizmente, essa é a realidade. Pouco se discute no ambiente público com o uso da razão – mais o cérebro do que o coração e o fígado – quando se envolve esse momento da história brasileira.
Esse fator inevitavelmente traz à tona o fato de que a decisão do STF não poderia ser racional, uma vez que haveria uma circunstância extrajurídica, poucas vezes admitida pelo mundo jurídico, para a tomada de decisão pela Corte: a imagem e a credibilidade institucional do STF.
A depender da decisão, poderiam algumas vozes do debate público – com certeza, descompromissadas com o bem da sociedade brasileira – indicarem que a Suprema Corte protege o regime de exceção estabelecido e seus eventuais algozes. Por essa razão, o primeiro erro foi esse: escolher mal a causa-piloto para julgar essa questão controversa relevante e, a partir dela, fixar uma tese para ser utilizada pelos demais órgãos do Poder Judiciário em casos similares (pedidos de responsabilização da imprensa por divulgar entrevistas).
O segundo erro do STF foi incluir essa mesma questão constitucional relevante em julgamento no Plenário Virtual. O caso era para ser debatido em sede de Plenário físico, em que se garante maior publicidade e transparência nos debates.
O Plenário Virtual, por si só, é objeto de crítica entre estudiosos do Direito, mas deixemos isso para uma próxima coluna. O relevante aqui é anotar que, regimentalmente, com todo o respeito a quem entenda de forma contrária, o recurso não poderia ter sido julgado em ambiente virtual, sem uma verdadeira discussão ampla pela sociedade e pelos veículos de imprensa sobre a importância do julgamento.
Pois, o caso não se enquadrava numa das hipóteses previstas do art. 21-B do Regimento Interno do STF, principalmente porque a matéria discutida não tinha jurisprudência dominante na Corte Suprema. Na realidade, o caso apresentava uma controvérsia profunda, ainda que sob diferenças a respeito do grau de responsabilização. O resultado mostrou isso: surgiram quatro correntes de pensamento sobre a tese a ser fixada em repercussão geral.
Houve, então, descumprimento do Regimento Interno pelo próprio STF, já que o caso deveria ter sido julgado no Plenário físico, cuja divulgação se dá, inclusive, pela internet e pela televisão.
O terceiro erro foi não atender à teoria do dano direto e imediato para efeitos de responsabilização civil (nexo de causalidade), nos termos dos arts. 403 e 927 do Código Civil, como já reconhecido, por diversas vezes, pelo próprio STF. Segundo essa teoria, somente é possível imputar a alguém a responsabilidade do dano, quando esse prejuízo é efeito necessário de uma causa.
A bem da verdade, a Suprema Corte criou uma hipótese de imputação de responsabilidade objetiva do veículo de imprensa: publicar, sem emitir opiniões, uma entrevista de terceiro. Isto é, pouco importa o dolo ou a culpa do veículo de imprensa na descrição opinativa de determinada entrevista, mas sim a relevância estar em ter veiculado, sem juízo de valor, uma entrevista de determinada pessoa.
Por isso, o realce não foi à toa: o veículo de imprensa, no caso apreciado pelo STF, não emitiu qualquer opinião, tendo, inclusive, oferecido o exercício do direito resposta à pessoa que se sentiu ofendida, mas que, na prática, não desejou fazê-lo, como constou expressamente do voto vencido do Ministro aposentado Marco Aurélio.
Veja-se, então, que o STF afastou, inclusive, um entendimento consagrado de maneira unânime na doutrina e na própria jurisprudência: ato exclusivo de terceiro é causa para afastar a responsabilização de qualquer pessoa, porque rompe o que se chama de nexo de causalidade, que é o fio de ligação entre a conduta e o dano para responsabilizar alguém a pagar outrem por ter cometido algum ato ilegal.
Essa observação realça, ainda mais, o segundo erro: se fosse para seguir o Regimento Interno do STF, o caso somente poderia ter sido julgado no Plenário Virtual se fosse para, no mérito, afastar a responsabilização dos veículos de imprensa, já que essa seria a conclusão derivada da teoria do dano direto e imediato para efeitos de responsabilização civil (nexo de causalidade), nos termos dos arts. 403 e 927 do Código Civil e na jurisprudência pacífica do STF.
O quarto erro foi o STF não ter apreciado as consequências de sua decisão, como determina o art. 21 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. A partir dessa decisão, os veículos de imprensa farão, na prática, quase uma censura prévia sobre quem poderá ser entrevistado, não podendo trazer à tona palavras e ideias que não representem a vontade da maioria. E, diga-se: maioria não da sociedade, mas a maioria dos juízes, porque, ao fim e ao cabo, quem decidirá se uma entrevista violou algum direito de outrem será o Poder Judiciário – e, ao final, o próprio STF.
Com isso, a imprensa passará a avaliar, mais do que já faz na prática, se alguma entrevista deva ir, ou não, ao ar. E, mais do que isso: haverá uma repercussão na própria divulgação de notícias opinativas pelos meios de comunicação. Pensemos: se a imprensa será responsabilizada por uma entrevista de terceiro, sem emitir opiniões, imagine para aquelas em que há uma emissão de opinião, ainda que baseada em indícios.
A imprensa funciona como um importante ator do debate público, por trazer à tona reportagens investigativas e opinativas, que, na prática, auxiliam ou mesmo permitem a instauração de investigações policiais de fraude e de corrupção de importantes atores políticos e grandes players econômicos.
Acontece que, com o aumento desmedido da responsabilização dos veículos de imprensa até por atos imputáveis a terceiros, a imprensa ficará mais comedida na divulgação de atos ilegais e de entrevistas de terceiros que imputem prática de ato criminoso ou de improbidade administrativa a algum poderoso político e econômico do nosso país.
O quinto erro foi a tentativa de alguns Ministros tentarem justificar a responsabilização da imprensa, por não atuar de maneira esperada na busca da verdade dos fatos. Curiosamente, a sociedade em geral – não só a brasileira – passa por uma guerra de narrativas sobre a verdade. Talvez, a disputa de narrativas faça parte do jogo sobre a busca da verdade. Pois, o que seria a verdade?
É comum utilizarmos um jargão popular de que um acontecimento sempre tem três lados: um do que se sentiu vitimizado, outro do que supostamente foi o algoz e o terceiro que seria a verdade fática. Esse terceiro lado, na prática, é curiosamente difícil de se obter, exceto em áreas do conhecimento humano que se exige cientificidade metodológica.
Se a sabedoria popular reconhece a dificuldade de se obter a verdade, será que um poder da república que representa aquele verdadeiro titular do Poder (o povo) tem condições de fazer isso? Parece-nos que a resposta é claramente não!
Por essa razão, o STF deveria ter utilizado, ainda que sob termos jurídicos, esse jargão para concluir que, de fato, não teria como responsabilizar a imprensa por uma entrevista de terceiro, sem emitir qualquer juízo de valor ou opinião – ou seja, sem praticar nenhuma conduta como se espera em temas de responsabilidade civil.
O sexto erro tem uma relação direta com esse jargão popular acima e demonstra a falta de proporcionalidade da decisão. Existindo dois lados, a melhor opção seria conferir à outra parte que se sentiu ofendida o direito de resposta, que encontra previsão constitucional (art. 5º, inc. V, da Constituição) e se encontra detalhado na Lei nº 13.188, de 11 de novembro de 2015.
O direito de resposta, na realidade e principalmente em momentos bem controversos da história brasileira, é o melhor caminho para oferecer ao debate público as informações para que o público interessado chegue à sua própria conclusão. A imprensa, quando divulga entrevistas, sem emitir opinião, apenas dá voz às pessoas, como a internet tem feito de maneira difusa e ampla a quem quer que seja.
Em razão disso, o direito de resposta proporcional ao agravo sempre parece ser a melhor saída para preservar aquilo que é essencial para os regimes democráticos: a liberdade de imprensa. Infelizmente, o uso sem critérios da expressão “respeito à democracia” tem levado a perda da relevância de seu significado, inclusive com a sua utilização como justificativa para situações bastante controversas em relação à se realmente está havendo esse respeito ao regime democrático.
Imputar responsabilidade à imprensa por divulgar uma entrevista de terceiro, sem qualquer emissão de juízo de valor ou de opinião, não parece ser verdadeiramente um caminho de respeito à democracia, mas sim de seu enfraquecimento.
A democracia, enquanto valor constitucional (art. 1º, caput, da Constituição), nesse caso, com todo o respeito, seria defendida, com unhas e dentes, caso colocado em prática o exercício do direito de resposta.
O sétimo erro, por fim, está por vir: a depender de como for apresentada a tese a ser seguida pelos demais órgãos do Poder Judiciário, haverá uma enxurrada de ações judiciais que podem levar à derrocada econômico-financeira da imprensa, uma vez que estará sujeita, a todo momento, a uma ação judicial de danos morais e materiais, por apenas ter divulgado uma entrevista, que é o centro de qualquer veículo de comunicação social: expor lados através de narrativas.
Do que adiante o STF ter reconhecido a ausência de direito esquecimento no Brasil (Tema 786 de repercussão geral), se assentou que os veículos de imprensa podem ser responsabilizados claramente por atos imputáveis, de forma exclusiva, a terceiros? Parece um contrassenso admitir o exercício do direito de informação pela imprensa e, ao mesmo tempo, falar que pode estar sujeita ao pagamento de indenização de quantias financeiras consideráveis. Agir assim é o mesmo que dar com uma mão e tirar com a outra.
Poderíamos indicar mais erros. Porém, vamos nos reservar a seguir a proposta inicial: realizar um jogo dos sete erros. Fica, mesmo assim, um alerta: essa decisão do STF sobre a responsabilização dos veículos de imprensa parece ser um spoiler da responsabilização das big techs de mídias sociais.
A guerra para se estabelecer o que é verdade está declarada, tanto para a imprensa tradicional, quanto para os novos veículos de comunicação social. Nela, prefiro ficar ao lado da corrente de uma voz só, como foi, por muito tempo, o Ministro aposentado Marco Aurélio, e defender que empresa jornalística não responde civilmente quando, sem emitir opinião, veicule entrevista na qual atribuído, pelo entrevistado, ato ilícito a determinada pessoa.
Espero que, muito em breve, parafraseando o mesmo Ministro aposentado, esses tempos estranhos se passem na jovem democracia brasileira.
*Mariano é Procurador Federal (AGU/PGF). Mestre em Direito e Políticas Públicas (UNIRIO) e em Direito das Cidades (UERJ). Especialista em Direito Administrativo (UCAM) e em Direito Administrativo Econômico (PUC-Rio). Membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio de Janeiro (IDARJ). Mariano compõe o time de especialistas do Panorama Jurídico, um conteúdo exclusivo do Boletim da Liberdade sobre a Justiça brasileira.