*Camila Assis Martins
Qual a relação entre Google, Facebook e Amazon e o pensamento de livre mercado? As propostas legislativas Digital Services & Markets Act (DSA e DSM, respectivamente), redigidas pela Comissão Europeia e submetidas ao Parlamento e ao Conselho Europeu em 15 de dezembro de 2020 despertaram a discussão sobre os limites do governo na regulação do mercado digital com argumentos como “eliminar monopólios” e responsabilizar as empresas de plataformas digitais pelos conteúdos que hospedam.
Nesse texto traço um paralelo entre o livro As seis lições, do economista austríaco Ludwig Von Mises, e o cenário atual que as gigantes da tecnologia enfrentam nas discussões sobre leis que buscam supervisionar e reformular o mercado digital, alterando a forma como elas operam.
[wp_ad_camp_1]
Lição 1: Nascimento das empresas digitais
A primeira lição de Mises é o reconhecimento de que o poder das grandes empresas não está necessariamente vinculada ao seu tamanho, mas sim à capacidade de atender e servir melhor que os concorrentes às necessidades dos clientes. “A mais poderosa empresa perderia o poder e a influência se perdesse seus clientes”.
E o mundo da tecnologia comprova tal fato: por exemplo, sabemos que o Google não foi o primeiro buscador do mercado, mas foi aquele que melhor atendeu a demanda de seus clientes: entendeu que seu “patrão” eram os clientes e que seus próprios colaboradores, jovens de uma nova geração, motivavam-se por outros princípios como excelência técnica, liberdade de criação e propósito. Foi devido à autonomia concedida a engenheiros e desenvolvedores – por exemplo, a famosa “política dos 20%”, em que os colaboradores podiam investir seu tempo, equipes e recursos em projetos paralelos – que o Google garantiu um fluxo contínuo de inovações. Gmail, AdSense, Google Maps, Google Talks, Google News são todos produtos resultados dessa política.
Hoje, Google e outras gigantes de tecnologia são acusadas – principalmente na proposta DSM – de “prender” o indivíduo ao criarem tal “rede de plataformas interligadas” que abusam de nossa liberdade. Por exemplo, até que ponto é lícito o Google listar suas próprias ofertas (ex. informar o Gmail primeiro quando pesquisamos “provedores de e-mail”) ou reutilizar dados pessoais para alavancar outros de seus produtos, como Youtube ou Blogger? Elas também são acusadas de terem tamanho domínio a ponto de poderem destruir (ou comprar) concorrentes. Mas será mesmo que essa é uma ameaça ao livre mercado?
Eu discordo quando penso que o próprio Google lançou primeiro o Orkut, rede social entre amigos, e hoje essa rede não existe mais, perdendo espaço para o Facebook. Essa tornou-se grande, mas também “ameaçada” pelo Instagram que se baseava em mais fotos que textos acabou adquirindo essa concorrente. Ou seja, isso é justamente o comportamento de livre mercado saudável que quero defender.
O segmento digital funcionou até hoje em regime de livre mercado. Afirmar que é necessário regular, como propõe a DSA, com o objetivo de “abordar o conteúdo ilegal e governar as práticas de moderação de conteúdo de plataformas de mídia social, em resposta a preocupações de que a Internet nem sempre é um lugar seguro para todos”, é colocar a liberdade individual em xeque.
Para seguir na reflexão, gostaria ainda de trazer um paralelo com outras duas lições de Mises…
Lições 2 e 3: Socialismo e Intervencionismo ou, a Questão da interdependência das liberdades
No capítulo intitulado Socialismo, Mises abre o texto chamando a atenção do leitor para a definição de economia livre: trata-se de uma economia de mercado, através da qual oferta e demanda autorregulam-se. Esse é o conceito de “liberdade econômica” que, ressalta o autor, costuma ser mal-entendido quando as pessoas supõem que essa seja dissociada de outras liberdades – de expressão, de pensamento, de culto, etc – e que essas últimas podem ser preservadas na ausência da primeira.
Já o capítulo Intervencionismo complementa o anterior, mostrando o que ocorre quando os governos não se limitam a preservar a ordem – proteger o funcionamento harmônico da economia contra fraude ou agressão interna ou externa – e interferem no mercado. No livro, Mises explora os exemplos do tabelamento de preços e controle de aluguéis, brindando-nos com dois aprendizados:
1. Sempre que interfere no mercado, o governo é progressivamente impelido ao socialismo;
2. A ideia de que existe uma via intermediária (“terceira via”) entre capitalismo e socialismo, em que as nações poderiam conservar as vantagens e evitar as desvantagens de um e de outro é um contrassenso impossível de ser regulado; exigiria interferências governamentais e retornaríamos para o ponto 1 listado acima, ou seja, esse governo “misto” (ilusório) também tenderá a implantar o socialismo.
Diante do exposto, leis e regulações para controlar a economia digital tornam-se perigosas pois adentramos um território até então livre, e que pode ser duramente prejudicado pela interferência governamental. Hoje, a regra é que as empresas que hospedam conteúdo digital não são responsáveis por ele, a menos que realmente saibam que é ilegal. A proposta DSA diz que, tão logo qualquer usuário na Internet marcar algum conteúdo como potencialmente ilegal, a plataforma deverá prontamente remover ou desabilitar o acesso a ele – antes mesmo de qualquer investigação. Se não fizer isso ficará sujeita ao risco de responsabilização legal que segue uma avaliação de legalidade real.
Mas, como pôr isso em prática? Como julgar conteúdo? Quem são as pessoas, agências ou instituições que definem que tipo de conteúdo é legal ou ilegal? Adentramos um terreno de regras arbitrárias, escrutínio judicial e democrático. Na prática, essa abordagem elimina do mercado a empresa de plataforma que precisa deletar imediatamente qualquer conteúdo marcado como ilegal. Nesse cenário, por essência, a empresa deixará de ser uma plataforma de conteúdos livre, ferindo o valor de liberdade que até então prevaleceu na economia digital.
Nas palavras de Mises “liberdade significa liberdade para errar (…) ninguém deve tentar policiar os outros no intuito de impedi-los de fazer determinadas coisas simplesmente porque não se quer que as pessoas tenham a liberdade de fazê-las. Essa é a diferença entre escravidão e liberdade”. Mises diz que o capitalismo pode ser mal utilizado (e, de fato, é) por alguns que fazem coisas terríveis. Cabe aos cidadãos que discordam de tal ação tentarem mudar as ideias de seus concidadãos.
Assim, avançamos para o último capítulo, Política e Ideias ou, Substituição de más ideias por ideias melhores.
Para Mises, a saída está no debate de ideias em defesa da liberdade política e econômica: “faz-se necessário combater as más ideias. Devemos lutar contra tudo o que não é bom na vida pública.”
Ou seja, por meio das propostas legislativas, temos uma tentativa de interferência na livre economia digital. Quais são os grupos de pressão por trás dessas medidas? Já vimos que, na economia liberal, as consequências do intervencionismo são sempre prejudiciais para o setor. Anders Borg, ex-ministro das finanças da Suécia, afirmou que o aumento da regulamentação da tecnologia provavelmente será “contraproducente” para a Europa: “Há um risco claro de que a ambição regulatória na União Europeia leve a menor pressão de preços e, talvez, a um desenvolvimento tecnológico mais lento.”
O objetivo desse texto é conscientizar as pessoas e a sociedade. O que mais me preocupa nessa discussão é justamente o cerceamento das liberdades pela indefinição do que será considerado conteúdo ilegal, e por quem. Abrimos brecha para um controle sobre a liberdade de expressão e troca de opiniões que pode ser maléfico para as próprias sociedades que primeiro propuseram tais legislações. É preciso defender o valor da liberdade no setor digital – responsabilizando cada empresa e indivíduo pelo uso ético e seguro das plataformas.
*Camila Assis Martins é mestre em Administração, associada do IFL-SP e executiva de Transformação Digital e de Negócios.
Foto: Reprodução/Arquivo pessoal.
[wp_ad_camp_1]