A partir da soltura de Lula, agraciado pelo complacente entendimento do STF segundo o qual, ressalvadas as prisões preventivas, o encarceramento de réus só poderia ser efetuado após o esgotamento de todos os recursos contra sentenças condenatórias, testemunhamos o surgimento de uma narrativa perversa, contrária aos fatos, e destinada a denegrir a reputação dos protagonistas da Operação Lava-Jato e a reabilitar a de seus alvos.
Nessa toada, vimos a anulação da condenação do atual ocupante do Planalto com base em mera “divergência de CEP”, enquanto ganhavam espaço, na mídia, os materiais da chamada “vazajato”, ou, em português claro, produtos de hackeamento ilegal de comunicações entre os então procuradores e o juiz da icônica 13ª. Vara Federal de Curitiba. Material, aliás, jamais periciado, e cuja autenticidade não chegou a ser reconhecida, nem mesmo pelos poderosos togados de cúpula.
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No entanto, instaurado um vale-tudo na demonização dos outrora “mocinhos” e nos louvores aos “vilões”, o então ministro Lewandowski, ainda no ano passado, havia autorizado o uso das mensagens hackeadas pela defesa de Lula. Mediante esse perigoso precedente, admitiu o emprego de provas cuja ilicitude havia contaminado todo o processo e as demais provas delas derivadas, e contrariou a jurisprudência consolidada pelo próprio tribunal, lastreada na famosa Teoria da Árvore Envenenada do direito Norte-Americano.
Para surpresa de ninguém, o Supremo estendeu o benefício a outros réus por corrupção, e inspirou o STJ a seguir sua orientação. Em reprodução literal da decisão do togado ora aposentado, o ministro Reynaldo Soares concedeu a empresários condenados o acesso às tais mensagens hackeadas, sob a alegação de que “é possível a utilização de prova ilícita, desde que em benefício do réu”.
Em todos os casos de autorização de emprego dos frutos de vazamentos criminosos, os magistrados, ao aceitarem conduzir processos “envenenados” pela ilicitude, traem os deveres a eles atribuídos pela Lei Orgânica da Magistratura de cumprir, e fazer cumprir as disposições legais. E ainda faltam com sua obrigação primordial de assegurar igualdade de tratamento às partes, a partir do momento em que concedem a exibição dos documentos ilícitos apenas aos réus, e não ao Ministério Público, o braço acusador do Estado.
E nem há que se aludir à obrigação do julgador de adotar posicionamento mais favorável à defesa, sempre que houver dúvidas quanto à autoria e à materialidade de crimes. Ora, nos casos relacionados às recentes operações anticorrupção, não paira mais qualquer névoa em torno da efetiva ocorrência das práticas, e muito menos da identidade de seus autores, pois as atividades criminosas foram demonstradas por um robusto conjunto de provas, acolhidas em várias instâncias, e todas submetidas ao crivo do contraditório e da ampla defesa. Dúvida? Só se for uma desconfiança plantada por hackers, ou seja, por bandidos cuja má fé é inerente à própria ocupação delitiva, e empenhados em fantasiar, aos olhos de leigos e incautos em geral, diálogos que integram uma regular rotina forense, sem sombra de heterodoxia.
Assim, os tribunais de cúpula, que deveriam rejeitar provas ilegais e punir os responsáveis por sua confecção, antes as têm chancelado, enlameando suas togas para, por meio delas, transformarem o ilícito em lícito. Da mesma forma como vêm rasgando a Constituição e as leis para assegurarem a liberdade a corruptos notórios, e encarcerarem desafetos por “crimes de opinião”, à margem da legalidade estrita e do devido processo legal.
Definitivamente, a cúpula togada se tornou nossa maior fonte de insegurança jurídica e de incremento à criminalidade grossa.
*Por Katia Magalhães