O ano era 1975. Vivíamos a ditadura militar e o Brasil estava nas mãos do presidente Ernesto Geisel. Um jornalista de nome Vladimir Herzog – Vlado para os amigos -, de fé judaica, casado e pai de dois filhos pequenos, acabava de ser nomeado para a direção de jornalismo da TV Cultura, vinculada ao Governo de São Paulo.
Vlado foi preso em 24 de outubro, na sede da emissora, por agentes do DOI-CODI, órgão de repressão do Exército, que, no dia seguinte, divulgou a informação de que ele havia se suicidado no cárcere, usando a tira de pano que serviria de cinta ao macacão de preso. O detalhe era que os macacões do DOI-CODI não tinham cinta. E o cenário do enforcamento mostrava Vlado amarrado à barra de ferro da janela da cela, a apenas 1,63m de altura, seu corpo com os pés no chão e as pernas curvadas. Cena que, absolutamente, não condizia com um suicídio.
As circunstâncias da morte do jornalista chocaram não só judeus, mas católicos e protestantes também. No velório de Vlado estava presente o cardeal arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, que tentou dizer algumas palavras, mas foi impedido pelos policiais presentes, tendo permanecido em silêncio, ao lado do caixão, juntamente com o então senador Franco Montoro. O rabino Henry Sobel procedeu aos preparativos rituais e, com coragem e firmeza, ordenou o sepultamento na área comum do cemitério, e não naquela reservada aos suicidas, contrariando as ordens expressas dos militares e policiais do DOI-CODI. O enterro normal foi a negação da farsa do suicídio.
Em 31 de outubro, D. Arns, o rabino Sobel e o pastor protestante James Wright presidiram, lado a lado, uma cerimônia ecumênica, na Praça da Sé, São Paulo, em homenagem a Vladimir Herzog. O encontro religioso reuniu oito mil pessoas, transformando-se na maior manifestação de repúdio à ditadura militar desde 1964. Esta união de religiões em mútuo respeito, no amor ao semelhante que sofre, no desafio à opressão, marcou época em nossa história recente e foi o princípio do fim do regime militar.
Agora, em 2022, vimos o assassinato, na Amazônia, do indigenista Bruno Pereira, exonerado da FUNAI, e do jornalista britânico Dom Philips, colaborador do The Guardian, do Washington Post e do New York Times, casado com uma brasileira e residente no Brasil há 15 anos. Os dois ficaram “desaparecidos” por mais de uma semana, tendo o Governo Federal, responsável pela área, levado dias para iniciar as buscas, mesmo depois de ordens judiciais neste sentido. Nenhuma manifestação oficial de repúdio, ou de condolências, foi emitida. Os nomes de Bruno e Dom não constam de qualquer pronunciamento oficial do governo.
Entretanto, mais uma vez, uma manifestação religiosa de consolo e pesar iluminou os corações e mentes daqueles que, na Inglaterra e no Brasil, choravam o assassinato dos dois mártires das causas ambientalista e indigenista. E ela veio da religião judaica, que nenhum dos mortos professava. O rabino Uri Lam, da Congregação Beth-El, disse a kadish para Bruno Pereira e Dom Phillips, que foi cantada por ele na língua indígena Kanamari. Foi uma cerimônia singela, pura, comovente de levar às lágrimas quem não tenha o coração empedernido pelas violências e agressões que sofremos dia a dia no Brasil.
Pode vir à mente a pergunta: o que levou um rabino judeu a dizer por Dom e Bruno, não-judeus, a prece da elevação dos que partiram? E em língua indígena? Minha resposta seria simples: o respeito de uma religião pela outra, o respeito e o amor dos homens e mulheres de boa vontade, uns pelos outros, qualquer que seja sua religião. Assim como tem que ser.
Infelizmente, D. Paulo Evaristo Arns não está mais entre nós. Faleceu em 14 de dezembro de 2016. Faz muita falta. Então, obrigada, rabino Uri Lam.
Shalom!